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Narcisismo terciário

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*Marilsa Taffarel

No dia seguinte à manifestação “Ele não” era mais nítido o sentimento de alegria… contentamento… satisfação… realização de algo significativo… das pessoas próximas que continuavam a enviar mensagens, vídeos, fotos, relatos.

Após manifestações acontece isso, mas nessa, decididamente, aconteceu mais, aconteceu maior, aconteceu muito.

Uma placa indicativa nomeava o epicentro do acontecimento: Potato Square. Vem a calhar a indicação em inglês, língua ainda internacional, pensamos. Trata-se de uma manifestação que ganhou essa dimensão e, em consequência as praças de varias capitais do mundo ocidental.
Na verdade, o epicentro era apenas nominal, porque havia vários pequenos centros em torno de um som, de alguma banda. O Largo da Batata perdeu seus contornos, ampliou seus limites. O que nos chamou a atenção foi justamente a manifestação consistir em estar ali, caminhar por ali, sentar no meio fio ou em alguma mureta. Estar entre as pessoas.

A defesa da diversidade, da multiplicidades, das singularidades estava ali estampada em gentes tão diferentes nas roupas, nos gêneros, nos adereços, embora sempre em algum lugar no rosto, nos braços, nas costas, nas testas, nas camisetas, nos lenços estivesse o “ Ele não”.

Estávamos caminhando entre as pessoas, sentindo com todos os sentidos e nos perguntando o que é uma manifestação, além de ser isso mesmo: uma manifestação?
Muitos cartazes diziam: “não é uma manifestação política, é moral”, pelo direito de ser diverso. Diríamos: uma manifestação desconstrutiva de enunciados totalizantes, hierarquizantes e fundados no desejo de uniformização do humano.

No entanto, fica a pergunta: afinal o que é uma manifestação? O fato é que não há uma manifestação. Há manifestações. Muitas delas constituem-se como fenômenos de massa que Freud descreveu. Massas mesmerizadas por líderes que encarnam figuras onipotentes, oniscientes. Líderes que convocam o desejo de obediência. Assujeitados, acríticos e passionalizados, os liderados abdicam de sua condição de sujeitos na entrega ao líder que os conduzirá ao poder e extermínio dos opositores.

Nessa manifestação “desconstrutiva”, tratava-se do prazer de estar entre pessoas as mais diversas de seu gênero, de sua classe, de seu nível, de sua geração. Estar além de todos esses atributos.

Pensei, para caracterizá-la e diferenciá-la em um conceito que reencontrei há algum tempo: narcisismo terciário. Conceito formulado por Alcira Marian Alizade, psicanalista argentina, falecida em 2012 , cofundadora da COWAP, autora de diversos livros sobre seu pensamento psicanalítico e também de livros de ficção.

Como ela pensa esse, que ela chama de “novo ato psíquico”, sem medo de usar as mesmas palavras que Freud utiliza para designar o narcisismo que se instala unificando as pulsões autoeróticas?

O narcisismo terciário dependeria de haver um investimento de amor que se inscreveria no bebê. Tal moção seria o suporte de investimentos que, à diferença dos narcisismos primário e secundário, não retornam ao ego. Eles não estariam ligados à castração, ao Édipo. Seriam pré- edípicos ou para edípicos e assim se manteriam.

Trata-se para ela da condição de possibilidade do relacionamento com o alheio, o distante, o social. Com objetos que estão além dos limites e dos interesses do nosso entorno social, estético, financeiro imediato. A vivência e a experiência da contingência e da transitoriedade da vida fariam emergir com mais força as possibilidades transformadoras, a conquista de espaços da pulsão de vida. Alicira pensa também a clínica como conquista desses espaços.
Vemos que, de forma ousada, essa autora – conhecedora do pensamento freudiano, kleiniano e do pensamento psicanalítico francês contemporâneo – prioriza, nessa conceituação, a pulsão de vida, o corpo – o corpo impõe sua presença viva e mortal – e os investimentos não-edípicos.

O narcisismo terciário pode ajudar a compreender como descobrimos a condição humana mais do que atravessando barreiras estéticas, intelectuais, diferenças de gênero. E sim recuperando investimentos em sistemas não centrados, não hierárquicos. Investimentos nas coisas humanas, em todos os seres que constituem nosso pequeno e frágil planeta.

 

Imagem: AFP para a Revista Época.

 

Marilsa Taffarel é membro efetivo e professora da SBPSP, mestre em filosofia da psicanálise pela PUC-SP, doutora pelo núcleo de psicanálise da PUC-SP e co-autora do livro “Isaias Melsohn, a psicanálise e a vida”.



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