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Transtornos alimentares como expressão de sofrimento psíquico

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Sabemos como é difícil e doloroso para os pais e familiares assistirem uma filha (o) emagrecer sem parar até onde “a carne encontra o osso”[1], não comendo o mínimo suficiente para se manter saudável, correndo o risco de ter sua saúde abalada pela escassa ingesta.

Também conhecemos a angústia dos pais que convivem com situações de compulsão alimentar com vômitos na sequência ou ainda o comer descontrolado e em excesso gerando um inevitável aumento de peso e queda na autoestima e provável distorções na imagem corporal.

São situações frequentemente encontradas na clínica contemporânea e relatadas por pais que se sentem em desespero, impotentes e culpados diante do intenso sofrimento, da força das compulsões e da fraqueza de suas intervenções.

Sabemos ainda que fazer jejuns severos ou vomitar o que “entrou em excesso” são costumes antigos que muitas vezes faziam parte de rituais religiosos de purificação e ascese. E percebemos em nossas pacientes, como o comportamento de purgar (limpar expulsando) está implicado com ideias de purificar o corpo dos pecados da gula e o cutting (ato de se cortar) associado a penitências, castigos, controle e percepção da própria existência.

A vontade de ter um corpo elegante e apreciado (e porque não perfeito), parece ocupar um lugar de destaque nas wishlists[2] dos jovens de hoje, ganhando da beleza dos rostos ou dos atributos intelectuais e culturais.

No tempo de nossas avós, o inferno era o lugar mais temido, hoje o inferno é a implacável balança[3]. O pecado maior é engordar e ficar sujeita (o) aos bullyings na escola ou à rejeição no trabalho e/ou na vida social ou rendida a usar roupas de tamanhos maiores, só encontradas em lojas voltadas ao público de idade mais avançada.

Como então conciliar a pressão para o alcance e manutenção da magreza com a oferta cada vez maior de comidas e bebidas nos bares e restaurantes que proliferam no planeta?

Como não sentir vontade de experimentar as comidas apetitosas exibidas nas redes sociais, nos filmes e programas temáticos na culinária?

E manter o apetite sob controle? E negar que existe o desejo?

A tentação gastronômica é atacada por censuras, medos, fantasias e culpas orbitando em torno dela, especialmente para a(o) jovem púbere que vivendo o momento delicado do adolescer (tornar-se adulto) se defronta com intensos sentimentos de insegurança, pois seu corpo muda numa velocidade maior do que sua mente pode acompanhar. Necessita se separar dos pais da infância e conquistar sua autonomia e ainda dar conta das novidades que o tumultuam constituindo uma nova identidade psicossexual.

Ou seja, que momento delicado e vulnerável vive o adolescente nesse intervalo entre os tempos, onde o futuro o desafia e o presente cobra dele novas performances!

 

Jacques André, psicanalista francês, numa apresentação sobre o tema no que tange à feminilidade, em visita ao Brasil, nos ensina:

“A puberdade para uma menina é o corpo que se abre (ou reabre) e sangra por causa disso, convocando de maneira especialmente viva as defesas narcísicas contra a brecha aberta (…)”

A puberdade confronta o psiquismo feminino com o seu interior, o seu desconhecido e as angústias arcaicas que gera, sobrecarregando a fantasia com um excesso de realidade (…)” (André, J. 2001)

A jovem sente uma “invasão-arrombamento do psicossoma”[4] e se fecha para novas entradas ou penetrações, atacando na fantasia o casal parental, reativando a fusão primitiva com a figura materna, destacando-se nesse momento, a oralidade, própria dos inícios da vida mental. Assim começam a surgir os sinais de alguma dificuldade ou obstrução da fluidez do desenvolvimento afetivo-emocional.

A comida e seus derivados passam a representar conteúdos ameaçadores e carregam o peso de histórias passionais dos vínculos primitivos, recontadas em sessão numa linguagem não apenas da sensorialidade a que estamos acostumados na clínica dos déficits simbólicos, mas numa linguagem ainda mais incipiente manifestada por secreções, barulhos viscerais, cheiros, olhares…

No cenário bulímico, após um comer exagerado, a menina se desespera não apenas por conta do evidente ganho de peso, mas principalmente porque realiza a fantasia de ter dentro de si um corpo estranho, que não lhe pertence e do qual precisa se livrar a todo custo. Reedita a angústia de invasão e aniquilamento dos momentos objetais inaugurais, ou seja, das primeiras experiências de alimentação.[5]

Os transtornos alimentares são assim denominados quando o comer e o beber já não estão a serviço do viver e passam a ser o receptáculo de afetos que nada tem a ver com a alimentação em seu sentido estrito, mas que pedem para ser resignificados.

Afetos, emoções, sentimentos e lembranças misturados com cheiros, texturas, sabor, aparência dos alimentos, que passam a ser o protagonista de alta ação em corpos magros, esquálidos ou inflados e cheios de conteúdos indesejáveis.

Jovens que relatam a sensação de que a comida os invade lotando seu ser e dela precisam se livrar. Alguns vomitando, outros impedindo sua entrada radicalmente. Anorexia e bulimia se revezam num jogo dialético da fome e da saciedade, do vazio e do cheio, do que entra e do que sai, confundindo o que é vida e o que é morte.[6]

Jovens que se sentem perdidos de si, onde o viver se esvazia e o desprazer impera, as contradições são profundas num mundo de secreções corporais onde as sensações atropelam as emoções, poucas são as palavras e muitos os atos, que impedem o sonhar.

Um universo em que a alimentação sofreu um transtorno, os transtornos alimentares que habitam corpos por eles acusados e mentes desgovernadas numa dimensão aprisionante que escraviza e submete.

Descontente, o jovem, impedido de sonhar, permanece na superfície… do corpo, do comportamento atuado, da pele e pede socorro.  As palavras ficam perdidas, os sonhos inibidos e a criatividade congelada.

Histórias de jovens, na sua maioria, meninas, quase crianças, perplexas diante da distância entre o ato e o sonho, assustadas por se perceberem vivendo num intervalo sem alternativas de conciliação. Lutam a todo custo para reencontrar em si o saber de si mesmas e assim fazer renascer seu sujeito desejante tão fortemente negado.

Anorexia, bulimia e compulsões falam de excessos e faltas, de invasões e repetições, de culpas e castigos, de dor e de amor.

Uma história que também é de paixões, sintomas orais que escondem e mostram angústias arcaicas, afetos embrionários que, misturados confundem e unem mãe e filha numa extrema dependência que paradoxalmente gera um ódio diante dessa ligação, onde uma não pode parar de nutrir a outra.

A oralidade dominando, a comida sinalizando o sintoma, o corpo sem formas da adolescente que permanece com corpo infantil sem condições para a menstruação, a constatação de que a anorexia incide com maior frequência no sexo feminino, o enredo passional mãe-filha, todos esses sintomas sinalizam o analista para dirigir sua investigação aos momentos arcaicos da vida mental, onde parece ter havido um descompasso nas primeiras relações de objeto que subverteu e congelou o caminho pulsional interditando o alcance da genitalidade permanecendo e se destacando o corpo-oral.

A recusa da entrada e a penetração dos alimentos sugerem um universo interno lotado na anorexia, uma desconfiança de tudo aquilo que vem de fora dele, assim como na bulimia a premência é da purgação, expulsando o que entrou sem permissão, o que não lhe pertence, e que, portanto, vai lhe fazer mal, um veneno tóxico. Um corpo estranho a invadiu e precisa ser eliminado: assim se apresentam as fantasias delirantes.

Freud constatou a presença de um núcleo melancólico nas mulheres, inspirado no atendimento das pacientes histéricas e o incluiu no que ele chamou de “neurose nutricional, ou “anorexia nervosa em moças jovens”, situações emocionais onde a sexualidade não se desenvolveu, pela perda do apetite, ou seja, perda da libido. (Freud, S. 1895)

Diz ele ainda nessa carta: “A melancolia consiste em luto pela perda da libido”.

A clínica mostra que o fechamento ao que vem de fora (o alimento como seu representante maior) pode, por outro lado, alertar sobre um movimento de proteção ao que sente vivo em si, a originalidade e singularidade do seu ser feminino em separado da figura materna à qual está condenada à uma antiga fusão. A urgência de resgatar sua identidade leva a menina a fazer dramaticamente renascer seu sujeito desejante nem que para isso tenha que morrer em seu corpo (Mannoni, M). Emagrece cada vez mais talvez no intento delirante de fazer sumir as figuras femininas engolfadas dentro delas, que ocasionam um mundo lotado. Um último intento de se purificar das fusões e confusões e assim achar o que ficou perdido, fragmentado e pulverizado dentro de si.

O labirinto de ilusões de autossuficiência, o beco sem saída para a alteridade, o congelamento pulsional fixado na oralidade mostram que “a busca da liberdade se tornou a sentença da minha vida”.

A escuta psicanalítica, priorizando a singularidade de cada paciente atendida, protegendo o vínculo com colheradas de alimento analítico em ritmo de conta-gotas, resgata as palavras perdidas, nomeia os afetos caminhando na construção de lugares onde possam ser contempladas as rachaduras identitárias libertando o psiquismo para o sonho, para a criatividade rumo ao alcance da genitalidade e finalmente para o reencontro de si mesmo.

Referências Bibliográficas 

ANDRÉ, J. Feminilidade Adolescente. São Paulo: SBPSP, 2001.
DEL PRIORE, M. Corpo a corpo com a mulher: pequena história das transformações do corpo feminino no Brasil. São Paulo: Ed. SENAC, 2000.
KLEIN, M. (1952) Sobre a observação do comportamento dos bebês. In: Inveja e Gratidão e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1985, p. 121.
FREUD, S. (1895) Rascunho G. In: Freud, S. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, v. I. Rio de Janeiro: Imago, 1977.
MADEIRA, C. Tudo é rio. 12ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2021
MANNONI, M. Instituição Psiquiátrica e Psicanálise II – Um caso de anorexia mental. In: O psiquiatra, seu louco e a psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1971.
MIRANDA, M.R. (2004) O mundo objetal anoréxico e a violência bulímica em meninas adolescentes. In: Revista Brasileira de Psicanálise. V. 38, nº 2, 2004.
OGDEN, T.H. The developmental impact of excessive maternal projective identification. In: Ogden, Thomas H. Projective identification and psychotherapeutic technique. London: Karnac, 1992.

[1] Expressão de Carla Madeira em seu livro Tudo é rio 
[2] Lista de desejos
[3] Ideias desenvolvidas pela historiadora Mary Del Priore em seu livro Corpo a Corpo com a Mulher
[4] Expressão de Jacques André em seu artigo Feminilidade Adolescente 
[5] Klein, M. (1952)
[6] Miranda, M.R. (2004), ver referências bibliográficas

Marina Ramalho Miranda é psicanalista membro efetivo e docente da SBPSP. Mestre e Doutora em Psicologia Clínica pelo Núcleo de Psicanálise da PUCSP. Especialista em Saúde Mental pela Faculdade de Saúde Pública da USP. Supervisora Clínica pelo Conselho Regional de Psicologia de São Paulo. Membro do Laboratório de Adolescência da SBPSP.

Imagens: Aquarelas “Melancolia” e “Indocilidade”, de Andrea Ramalho Miranda. 

As opiniões dos textos publicados no Blog da SBPSP são de responsabilidade exclusiva dos autores.   



Comentários

2 replies on “Transtornos alimentares como expressão de sofrimento psíquico”

Marialva Da Rocha Robaski disse:

Parabéns pela bela reflexão sobre um tema instigante e muito presente na clínica psicanalítica! Precisamos acolher, escutar essa dor psíquica que está “ gritando” através do corpo…

Miriam Abduch disse:

Um tema muito interessante, pois nos leva a pensar , como o próprio tema do artigo, um corpo que expressa, sinaliza e fala sobre algo qual seja, o lugar do sofrimento. Pensei num corpo que também expressa, um vazio : de um eu, de um sujeito. Trata-se de um assunto delicado, difícil em seu manejo clínico, porque é uma vida , ou um ser que carece nascer.

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