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Sobre a Feminilidade

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**Anne Lise diMoise S. Scappaticci

Tentarei expor algumas ideias acerca do feminino do ponto de vista mental. Estas linhas refletem o meu modo de pensar a feminilidade como psicanalista e partem da minha experiência de trabalho clínico apoiada nas análises de mulheres das mais diversas faixas etárias que tive a oportunidade de acompanhar.

Penso, tanto em meu trabalho clínico como na vida em geral, na questão de gênero como entrada na vida psíquica, algo maior e não apenas “gênero”, “sexo” ou, ainda, “sexualidade” – em sua acepção mais restrita e literal da palavra. Está ligada a identidade, a busca de si mesmo e, portanto, à “autobiografia” de cada um de nós. De algum modo, a feminilidade está sempre presente em nossos relacionamentos. O feminino não é prerrogativa de gênero – tratar-se de homem ou mulher – , mas, sim, poder pensar com a emoção em algo cuja natureza permanece envolvida no mistério. Não pode ser revelada, somente intuída. Se houver condições, pode ser vivida.

O feminino é, portanto, algo inaugural no psiquismo humano. É, e sempre será, mistério, algo original, origem de cada um, matriz, o que leva à busca de aproximação ao longo de toda a vida, nunca o bastante. Uma condição de infinitude que vai ganhando formas finitas à medida em que descobrimos nosso próprio método de apreensão do real e que podemos, gradualmente, ir descartando a fantasia onipotente de posse do mesmo.

Melanie Klein, psicanalista que investigou profundamente a vida mental infantil, focalizou o mundo primitivo feminino de maneira concreta. Curiosidade e respeito pelo interior do corpo materno constituindo interesse pela descoberta de seu próprio mundo interno, ampliando o sentido de responsabilidade. Assim, uma janela se abre para o infinito, feminilidade.

Por outro lado, descreveu o desejo de possuir e esvaziar o ventre materno, o espaço mental íntimo e sagrado sendo vorazmente profanado, despertando o receio de retaliação. Retrata a Luta para sair da Melancolia e tolerar o Luto pela dor provocada. O preponderar desta dimensão satura o mental de dor não sentida. Luta-dor…

As questões de gênero estão, portanto, relacionadas com a identidade de cada um. Assim, ao descobrir a feminilidade colocamos em evidência a tensão existente entre o feminino e o masculino em nós mesmos, um intercurso psíquico. Nestes momentos, vivenciamos a tensão do contato com o desconhecido, do nunca abordado, o que, de um lado, desperta a curiosidade e, de outro, o medo pelo tumulto que a experiência emocional engendra.

Se a pessoa tem uma noção e uma abertura para a sua vida psíquica, ela se torna um autor, conquista sua própria autoria. Cada “autor” possui profundamente uma noção pessoal da própria verdade, e esta seria a sua janela para o mundo. A feminilidade é a conversa permanente e íntima entre o sentir e o pensar, funções interligadas e nunca completamente satisfeitas. Justamente por unir ambas, cada vez que uma noção de si é atingida, apesar de ser uma sensação de acordo efêmera, ela permanece no psiquismo de maneira profunda. Assinatura da alma?!

Um caso clínico

Cavalgada…

Estou diante de uma mulher que chora um choro sentido e desesperado, que me faz remexer na cadeira sem encontrar conforto.

Suas lágrimas parecem esvaziar seus recursos, seu continente.

Embora siga seu discurso, seu tom de lamento me lança para longe de seu conteúdo. O clima é de desesperança. “A rosa está despedaçada”, ela repete e repete. Olho para ela e paro em seus cabelos. Está deixando-os crescer grisalhos; metade da cabeça é cinza e a outra, preta. É quando, de repente, digo a ela que estou ouvindo uma música. “Roberto Carlos”, eu complemento, “Cavalgada, se intitula”. Ela responde que aquilo parece brega demais e eu concordo com um “sim. Muito!”, mas a música e a situação me emocionam. Canto para ela o trecho que me vem  à  cabeça e depois ouvimos a música juntas.

Vou me agarrar aos seus cabelos/ Pra não cair do seu galope…Sem me importar se neste instante sou dominado ou se domino/ Vou me sentir como um gigante/ Ou nada mais do que um menino…
Estrelas mudam de lugar/ Chegam mais perto só pra ver/ E ainda brilham de manhã/ Depois do nosso adormecer/ E na grandeza deste instante
O amor cavalga sem saber/ E na beleza desta hora/ O sol espera pra nascer”

Despeço-me com o Tema de Alice, interpretada por Adriana Calcanhoto

 Se eu não disser nada
Como é que eu vou saber?
Onde fica a estrada
Do castelo do querer
Qual a resposta?
Me diga, então
Qual é a pergunta?
Se eu não disser nada
Como eu vou saber
Onde fica a chave
Do mistério de viver?

*The room with a view (1985).Reino Unido. Diretor: James Ivory

**Anne Lise diMoise S Scappaticci é psicanalista pelo IPA, professora e didata da  Sociedade Brasileira de Psicanálise e doutora em Saúde Mental pelo Departamento de Psiquiatria da UNIFESP.  | annelisescappaticci@yahoo.it

 

*** O artigo será publicado integralmente pela editora Blucher num livro coordenado por Claudio Castelo e Renato Trachtenberg sobre o Feminino.



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