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Psicanálise em tempos de coronavírus

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* Dora Tognolli

  • The storm will pass … and… each one of us?

Torna-se bastante difícil escrever algo no auge da pandemia, no auge da semana em que novas práticas estão nos desafiando. Inexoravelmente, somos “bypassados” pela dinâmica dos fatos externos e de nossas próprias elaborações que não param de nos invadir, pelo bem e pelo mal, mesmo porque muitos pensamentos ativados pela situação traumática não acabam sendo boas companhias…

Nesse momento, tenho o privilégio de estar acompanhada de outros pensamentos, de psicanalistas, jornalistas, escritores, economistas, humoristas, cronistas, familiares, amigos frequentes e atuais, e os que retornaram das nuvens dos tempos em busca de contato. Minha reflexão não é só minha: fruto de uma colagem que está sendo útil, fazendo boa companhia.

  • Isolados…mas não sozinhos!

Curioso o nome que demos a essa temporada forjada pelo Covid-19: isolamento. Cada um no seu pedaço, comprometido em não disseminar a peste, não transmitir e nem ser alvo da transmissão, mas muito conectados, em uso pleno das modernas tecnologias de redes. Alguns de nós reconhecemos que estamos usufruindo bastante, dos dias calmos, da parada da desmesura e do excesso, das paisagens desertas e silentes. Tudo parou: será? Se alguém pudesse capturar o movimento das nuvens e ondas de transmissão, teríamos um espetáculo colorido e pulsante sobre nossas cabeças.

  • Fazer nada … não parece uma boa escolha…

Ficar em casa, sem sair, com todo o tempo para si… pode ser perigoso…Pode convocar o pecado da preguiça no seu sentido mais nefasto: cansaço psíquico, apatia, desinteresse… melancolia…Não estamos em férias, portanto, há trabalho. Não o trabalho na estreita acepção capitalista, atrelado à produtividade, grana, ambição, acúmulo, competição. O sentido freudiano de trabalho cabe bem aqui: trabalho do sonho; trabalho da memória: alude a um processo interno intangível, que põe em movimento o sistema psíquico, em conversa dentro, fora, consciente, inconsciente, presente, passado, fantasia, realidade, o eu e o outro. Momento de uso criativo de ferramentas que estavam adormecidas em nós, muitas vezes, massacradas pela visão estreita de trabalho que nos acompanha. Convite a cozinhar, ler, arrumar a casa, dialogar, contar estórias, exercitar os músculos, tocar piano, aprender um idioma online, atender pacientes etc.

  • Não estamos em tempos normais… estamos em regime de exceção…

Sim: exceção tem parentesco com trauma, com estímulos de magnitude e tempo de existência incomensuráveis. Racionalmente, ok: somos obedientes, marcados por solidariedade e cidadania, mas essa insegurança deixa restos enigmáticos, que não entram na corrente de ideias e se manifestam de formas insidiosas. Angústia, sim: muita angústia. Angústia que busca expressão, vira medo: medo de falir, de deprimir, de não ter comida em casa, de perder nossos pacientes, de contaminar os mais idosos de nossas famílias, do Bolsonaro, dos generais, do Trump, do Posto Ypiranga, do desgoverno, anterior ao vírus…

Desamparo. Ódio. Depressão. Juntos e amalgamados. Com certa dose de esperança e calma, não podemos esquecer…

Nesse momento, parece que a solidão não é uma boa companhia: pode chegar com seus polos de onipotência (Não conto com ninguém! Nem preciso!) ou de impotência, em que o desamparo dá sinal de vida. Em conjunto, em comunhão, parece que unimos nossos conhecimentos dispersos e fragmentados, e que podem propiciar uma organização social, ares civilizatórios diante do caráter implacável da natureza: agora do vírus e de certos representantes do poder que não participam desse possível refúgio civilizatório.

O filme “Melancolia”, de Lars von Trier, é aqui lembrado: curiosamente, o personagem mais racional, mais informado, o geômetra, diante do caos, sucumbe: acaba se suicidando, deixando a fortaleza segura onde vivia com sua família. Nosso lado onírico, mais louco e caótico, pode nos fazer bem, num momento onde os instrumentos tradicionais de controle falham…

  • Esquecer/ neutralizar a ignorância e o obscurantismo

Em se tratando de Brasil, além do vírus, nosso outro inimigo está encalacrado no Governo, na figura do Presidente, que nos apresenta outra classe de vírus, cujos sintomas são o obscurantismo, o ódio, o desrespeito, a irresponsabilidade. Parece que estamos sendo criativos, na medida do possível, e coletivamente, manifestando nas varandas, nos panelaços, nossa desobediência e protesto diante de uma figura que não merece nosso respeito. Vamos continuar nossos levantes, contando que outros representantes políticos ignorem cada vez mais este ser abjeto, derretendo seu lugar e decretando simbolicamente sua inexistência. Onipotente, essa ideia, mas esperançosa: levantes são assim…

  • Ao trabalho

Muitos de nós precisamos trabalhar, queremos trabalhar, em todos os sentidos, e estão pedindo nosso trabalho. Em outros moldes, outro setting, outra dinâmica. E agora, José? Mais uma vez, estamos sendo convidados a nos reinventar e permanecer com nossas ferramentas ativas. Por todas as questões anteriores, nossa profissão tem utilidade pública, nossa conversa acessa os mais recônditos lugares de desamparo e angústia. Muitos colegas já trabalhavam em modo virtual, e sua experiência pode nos ajudar a repensar as práticas. Porém, este momento tem um ar especial, porque não se trata de escolha, mas a única forma de não paralisar o trabalho das análises. Hoje, na cidade de São Paulo, o Estádio do Pacaembu, bem como o Parque Anhembi estão se transformando em “hospitais de campanha”, metáfora interessante, onde as condições ideais não podem estar presentes, mas a iniciativa garante que médicos trabalhem e pacientes sejam atendidos, num espaço de acolhimento, ética e respeito.

As instituições possuem protocolos e normas que pautam os ofícios. No caso da nossa Instituição, é a IPA que rege essas normas, às quais estamos todos submetidos. Mas, por se tratar de um momento de exceção, a manutenção da prática, a meu ver, deverá ser propiciada por uma conversa em tempo real entre profissionais e órgãos reguladores. O analista experiente, numa época de exceção, talvez não seja apenas o mais velho, mais titulado e reconhecido: esse também precisará dialogar com seus pares, na tentativa de manter o atendimento sem prejuízos do ponto de vista da ética e da confiabilidade.

Além do método psicanalítico (livre associação – atenção flutuante, que depende de dois na sala, física ou virtual), ferramenta que aprendemos a cultivar e aperfeiçoar, o momento nos convida a pensar com cuidado nos dispositivos de segurança que precisaremos usar, e também que nossos pacientes utilizarão.

Estas semanas serão um grande laboratório para todos nós, em que definiremos os horários, as plataformas (Skype, WhatsApp – voz apenas, ou imagem e voz, Zoom, Hangouts, telefone celular ou comum) e se há resistências intransponíveis de certos pacientes, e de certos analistas, diante desse novo setting virtual.

  • Tem adulto na sala…

Gostaria de compartilhar algumas experiências bem recentes: quando meu consultório se transformou em virtual, uma vez que encerrei os atendimentos presenciais no dia 18 de março, experimentei um enorme cansaço, após um dia de trabalho virtual, em modalidades variadas: voz, imagem, ambas, troca durante o atendimento por falha na transmissão. Algumas questões surgiram: a necessidade de espaçar mais os horários e flexibilizar opções para pacientes que estão em casa como eu. Alguns, com dificuldades enormes em manter um espaço privado, em função de suas pequenas moradias, e presença da família o tempo todo em conjunto. Eis aí uma questão operacional, nem tão difícil de resolver, que merece tempo e atenção.

A outra questão diz respeito ao momento em si, traumático e assustador para os dois: paciente e analista. Notei que foi um tanto quanto difícil sair do tema da pandemia, e possibilitar o estranhamento necessário ao encontro analítico, acessando os lados mais enigmáticos do paciente. Na pandemia, nos irmanamos, nos solidarizamos, nos familiarizamos com o paciente, e assim, ficamos mais distantes do dispositivo do método. Enredados nas conversas que ambos ouvimos, ficamos duas crianças na sala, desamparadas, em busca de um adulto, não necessariamente o “sujeito suposto saber”, mas aquele que acompanha a longa jornada ao mundo interno, que muitas vezes não tem as respostas nem as certezas, mas propicia a viagem.

Outra experiência significativa foi o apoio em redes de colegas, em reuniões virtuais, onde pudemos falar da experiência recente, numa espécie de supervisão horizontal, colocar nossas angústias num espaço ético e colaborativo.

A conversa continua, a pulsão não sossega, exige trabalho…

Dora Tognolli é psicanalista, membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e mestre em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (USP).

Crédito: Photo by Magda Ehlers from Pexels 



Comentários

2 replies on “Psicanálise em tempos de coronavírus”

Edilaine Zamberlan Serra disse:

Oi Dora!
Seu texto me provocou várias emoções. Me senti acolhida, compreendida, amedrontada e inquieta.
Revela claramente o delicado e temeroso momento pelo qual estamos passando. Mas, acima de tudo, desperta movimento para pensar, reinventar e criar.
Em meio ao caos, um sentido de esperança e de fé.
O pouco que te conheci, nele te reconheci.
Um grande abraço!!
Edilaine

Curso Online disse:

Sou a Marina Almeida, gostei muito do seu artigo tem
muito conteúdo de valor parabéns nota 10 gostei muito.

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