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O ofício do analista: um percurso na terceira margem do rio

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um bom poema leva anos
cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,
seis carregando pedra,
nove namorando a vizinha,
sete levando porrada,
quatro andando sozinho,
três mudando de cidade,
dez trocando de assunto,
uma eternidade, eu e você,
caminhando junto

Paulo Leminski

 

Psicanálise é experiência emocional vivida. E como tal não pode ser transcrita, gravada, explicada, compreendida ou contada em palavras. É o que é. Assim define T. Ogden (2006) em “Esta arte de Psicanálise”. Também podemos considerar uma experiência bastante singular e pessoal, que se inaugura no ofício e no tempo de cada um de nós. Existe uma palavra que abarque suficientemente o fazer do analista? Isto é, seria possível pensar no analista enquanto uma instância, algo fechado, um nome simplesmente?

Descrever uma experiência psicanalítica é difícil, pois dispomos de ferramentas que não são facilmente nomeáveis, custam a tomar forma, demoram a caber em palavras. Nossos grandes sinalizadores são muitas vezes iniciados num campo de sensações – intuição, silêncio, clima emocional, percepções –fenômenos que são do campo do não dito. São estes nossos fiéis escudeiros que se apoiam em nossos espaços inconscientes, até ganharem o corpo da palavra. São como guias que nos ajudam a formular uma interpretação que genuinamente acesse o outro.

Porém, até alcançarmos uma fala que, de fato, provoque alguma mudança psíquica, permanecemos por um tempo de tolerância, num lugar obscuro. Num terreno cujo caminhar muitas vezes é repleto de incertezas. São estes os momentos que nos colocam em contato com algo precioso: A fé no trabalho psicanalítico. É ela que nos sustenta quando o percurso se torna difícil, quando a realidade nos testa. E liga-se ao desejo de insistir pela vida. A fé não no sentido religioso de crenças e dogmas. 

Bion (1973) define a fé como uma resposta primordial e profunda de defesa contra o sentimento de catástrofe. É uma experiência emocional, singular. Porém não se trata de uma fé religiosa – um conjunto de dogmas e doutrinas que constituem um culto. Para o autor, esta fé se torna apreensível quando se representa no pensamento e por meio deste. Se trata da fé na existência de uma realidade verdadeira e última.  A fé que move um cientista a ir em busca de algo, mesmo sem dados objetivos. Em minha opinião, a fé e esperança do paciente e do analista estão intimamente ligadas à pulsão de vida (Eros) e isso nos dá forças para que continuemos na aventura analítica” (DI CIERO, 2010, p. 3).

A adaptação teatral do livro A alma Imoral (BONDER, 1998) traz uma cena sobre a fuga dos judeus do Egito, na qual revela que o  que levou o mar a se abrir foi a comoção de Deus vendo a caminhada de seus fiéis: “Primeiro você caminha, depois o mar abre”, diz a atriz Clarice Nisker.

No manejo analítico, muitas vezes caminhamos num terreno obscuro, com nossos pensamentos não tão claros. Desprovidos da fé em nossa função analítica, podemos ficar paralisados frente ao não sabido, ao invés de nos deixar ser levados por esse lugar para, no momento apropriado, criar algo que efetivamente traga algum movimento no campo analítico.

Por outro lado, quando o paciente se sente compreendido e o analista assiste essa mudança de olhar, testemunhando uma mudança psíquica, faltam palavras que expressem a força e a beleza pulsante desse momento.

E esses momentos servem como combustível para fortalecer a tolerância do analista para suportar os momentos mais nebulosos. Nestes, a sensação de travessia sendo feita pela dupla é uma experiência muito intensa e profunda. A celebração do paciente pelo analista é descrita por Bollas (1992) como essa experiência de prazer em sentir-se compreendido, celebrado, existente durante uma sessão de análise.

Durante o percurso da formação psicanalítica, a fé em nosso trabalho é questionada, discutida, reafirmada. O analista em formação se prepara durante anos para que possa apropriar-se do título: Psicanalista.

Contudo, será que é de fato importante que alguém nomeie nosso fazer, além de nossos pacientes? Ao mesmo tempo, argumentamos: se só o paciente nos nomeia analista, algo também se complica, uma vez que é preciso responder em voz alta pelo nome que somos chamados.

Assim, ter uma identidade bem definida enquanto analista é essencial e a Instituição torna-se palco desse ser em desenvolvimento. É no campo institucional e na análise e nas supervisões, que se configura o aninhamento do analista em formação assim como a rica troca de ideias.

Cabe ressaltarmos, ainda, que esse nome deve estar primeiramente gravado de cor, no sentido usado pelos gregos antigamente: na corda do coração. Para assim reverberar com clareza em nosso fazer.

O analista sai de dentro de nós, per via de levare. Como um escultor que liberta a figura aprisionada na pedra, ideia de Freud, apresentada em seu artigo “Sobre a Psicoterapia (FREUD, 1904/1905). O psicanalista sempre esteve lá e vai se apossando de nosso estado bruto aos poucos, à custa de estudo, análise, supervisão e, finalmente, à custa de horas de trabalho e de suas entrelinhas.

E essas entrelinhas correspondem a todos esses estados sem nome, sem lugar, a essa terceira margem do rio que indicam que o caminho em direção à compreensão do paciente está sendo seguido. Esse lugar entre o eu e o outro, que existe num campo emocional, antes de se vestirem de palavras.

Não existe a inauguração de um sujeito analista, uma vez que uma dada inquietude, um desassossego, uma empatia diante do sofrimento do outro sempre esteve lá. Do contrário não teria sido esse o caminho escolhido. É preciso que sempre tenha estado, para vir a ser o local de pouso da história daquele que vem ao nosso encontro, em busca do sentimento que conduz a vida: a esperança.

Manuel Lauriano Salgado de Castro (2005, p. 201), em seu artigo “Tornar-se analista”, ressalta: “Ser um objeto significativo em análise que realmente atenda as necessidades profundas do paciente é uma função que depende totalmente do desenvolvimento e da conquista da função psicanalítica pelo analista”.

A função psicanalítica custa a ser lapidada, tal como o poema que inicia o artigo. E depende da qualidade do contato do analista com seu mundo interno, com sua terceira margem do rio. Assim como o analista faz sua travessia em direção á compreensão do que se passa no mundo mental daquele que entra em seu consultório. Como adiciona o autor Paschoal Di Ciero:

Quando Bion fala de Continência do analista está falando de algo de dentro da pessoa do analista. Quando fala de Réverie do analista está se referindo ao mundo de fantasia deste. Na elaboração emocional do analista está implícito que este passa por situações de desconhecimento, de angústia, de trabalho com suas emoções e impulsos, de transformações de sua pessoa que se dão ali no vínculo emocional com seu paciente e induzido por este. Já estamos longe daquele analista distante, objetivo, que era apenas uma tela em branco, cuja pessoa teria que permanecer incógnita. Estamos falando de um analista que é afetado pelo paciente e que isso produz modificações em sua maneira de encarar o material analítico… Isto é, o analista afetado pelo paciente pode ter experiências desde as mais regressivas até as mais elevadas. Assim quando falamos de contratransferência no sentido de Paula Heimann, continência de Bion e Holding de Winnicott, estamos falando de recursos da pessoa do analista que servem de instrumentos para seu trabalho clínico“ (p. 3)

A Psicanálise não é um nome, é um estado. Uma maneira singular de estar no mundo e de trocar com ele, percebendo o grande potencial transformador do humano, nosso material de trabalho.

Nesta linha de pensamento, Ogden adverte que o paciente precisa de alguém familiarizado com a noite, com a dor, alguém que se comova com a escuridão sem temê-la ou paralisar-se diante dela. Talvez antes de nos perguntarmos se somos ou não analistas, seja mais importante observar se estamos ou não familiarizados com a noite.

No texto “Pôr-da-lua” a psicanálise é descrita por Rubem Alves (2013, p. 206) como um exercício de poesia, e que cada pessoa é como um poema encarnado. E alerta que nossa infelicidade/neurose se deve ao fato de esquecermos o poema que está em nós transcrito. O psicanalista, segundo o autor, é o intérprete do poema estrangulado.

O paciente que nos procura, busca alguém para abrigá-lo internamente, a fim de compreendê-lo. Devemos ser capazes de nos reinventar para cada paciente, para nos tornamos o analista do qual o paciente necessita: “o analista precisa aprender sob nova ótica, como ser o analista de cada paciente em cada sessão” (OGDEN, 2006, p. 177).

Assim como o Ego é construído por uma série de catexias objetais abandonadas, a função analítica é construída pela capacidade do analista em assumir as transformações em si que aquele atendimento lhe trouxe, como uma espécie de gratidão pelo que o paciente, com seu mundo interno, nos desafiou.

É Ogden (2006, p. 180) quem define a importância desse movimento:

“Se o analista não se modificar a partir do conjunto de experiências passadas e atuais que ocorreram dentro e fora da análise, ou essas experiências são insignificantes ou o analista é incapaz de ser afetado por sua experiência (incapaz de sonhá-la ou aprender com ela). Se assim for, é duvidoso que o analista possa se empenhar em trabalho analítico genuíno com o paciente.”

Fala-se muito da gratidão do paciente e do quanto ela é importante para um trabalho construtivo. De fato, ela é bastante importante. Mas o reconhecimento por parte do analista da transformação daquele encontro é o que completa o trabalho, possibilitando uma troca e um verdadeiro aprendizado.

O texto de Baranger: “A situação analítica como campo dinâmico” (BARANGER; BARANGER, 2010) descreve análise como uma situação na qual duas pessoas estão indefectivelmente ligadas e complementares, num mesmo processo dinâmico e que nenhum membro desse par pode ser entendido sem o outro.

Esse lugar onde o paciente nos habita também não tem um nome definido. É que um nome não contém todas as emoções que envolvem todo esse percurso. Talvez um sonho as contenha, ou uma poesia. Também não sabemos nomear com clareza o espaço de um analista na vida de alguém. Talvez esse lugar esteja numa terceira margem do rio. Onde vagalumes se acendem na escuridão.

 

Referências Bibliográficas

ALVES, R. Pôr-da-lua. Jornal de Psicanálise, São Paulo, v. 46, n. 84. p. 205-206, 2013.
BARANGER, M.; BARANGER, W. A situação analítica no campo dinâmico. Livro Anual de Psicanálise, São Paulo, v. 24, p. 187-214, 2010.
BOLLAS, C. A celebração do analisando pelo analista. In: ______. Forças do destino: psicanálise e idioma humano. Rio de Janeiro: Imago, 1992.
BONDER, N. A alma imoral. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
CASTRO, M. L. S. de. Tornar-se analista. Jornal de Psicanálise, São Paulo, v. 38, n. 69, p. 199-210, 2005.
DI CIERO. Fé e compreensão psicanalítica. In: LEVINZON; SIMON; YAMAMOTO (Orgs.)  Novos avanços em psicoterapia psicanalítica. São Paulo: Zagodoni, 2016.
LEMINKSI, P. Toda Poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013a
K.; LEVINZON, G. K. Novos avanços em psicoterapia psicanalítica. São Paulo: Zagodoni, 2016.
FREUD, S.  “Sobre Psicoterapia”. In: ______. Obras psicológicas completas: Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1969. v. XIV.111.
OGDEN, T. H. Esta arte da psicanálise. Livro Anual de Psicanálise, São Paulo,
v. 21, p. 73-189, 2006

Helena Cunha Di Ciero é psicanalista, membro efetivo da SBPSP. Especialista em psicoterapia psicanalítica pela Universidade de São Paulo.

Imagem: Shutterstock (n. 2194294393)

As opiniões dos textos publicados no Blog da SBPSP são de responsabilidade exclusiva dos autores.    



Comentários

5 replies on “O ofício do analista: um percurso na terceira margem do rio”

Maria José Caiuby Guimaraes disse:

Maravilhoso o texto, com tanta clareza define o que ser psicanalista ,bem como psicanálise. Procurando retirar de cada autor um significado importante.

Francine Tognin disse:

Lindo texto. Felizmente costurado tal qual Guimarães Rosa em A terceira margem do rio. Parabéns

Marta Foster disse:

Excelente e emocionante texto , traz com clareza a beleza, seriedade e o empenho que envolve esse maravilhoso ofício, situado na terceira margem e um vir à ser que não se esgota. Parabéns Helena, gostei de te conhecer!!

Paulo Emanuel Doro Pereira disse:

Bastante apropriado, útil e atual.

Angela Soares disse:

De tempos em tempos, retomo essa boa leitura e me inspiro!!!!! Obrigada

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