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Um novo Admirável mundo novo*?

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Quando, no filme sobre a vida de Elizabeth II, ela, ainda menina, recebeu a notícia de que como seria a próxima rainha não poderia socializar com qualquer pessoa, a intérprete “interpretou” tristeza em seu semblante.

Nós, que talvez não seremos nada além do que já somos, pós-Covid-19, recebemos a notícia de que não podemos mais socializar com NINGUÉM. Só virtualmente. Estamos no momento mais incerto jamais vivido de uma pandemia.

A primeira morte próxima me trouxe para a realidade da peste. Este impacto surgiu quando fiquei sabendo que Naomi Munakata, a maestrina que regeu por duas décadas o Coro da Osesp, morreu. Ah! Sim, ela tinha saúde frágil, ouvi dizer. Um argumento um tanto defensivo. A grande maestrina Naomi Munakata morreu, é isso que importa. “(…) quanto vale essa vida em percentual de desemprego ou do PIB?”, comentou Aimar Labaki, diretor e dramaturgo.

E todos que morrerão serão Naomi Munakata, nascidos em Hiroshima, como ela. Não queria dizer que todos que morrerem serão Naomi Munakata, nascidos em Hiroshima. Mas disse.

Não seria, no mínimo curioso, a maestrina ter nascido em Hiroshima? A cidade “da rosa radioativa, estúpida e inválida” como escreveu o poeta Vinicius de Moraes sobre a primeira bomba atômica da história, que arrasou Hiroshima (e depois Nagasaki), no período final da segunda grande guerra. Bomba lançada por um avião americano. Cento e quarenta e cinco mil pessoas se desintegraram, principalmente, crianças e mulheres. Teria sido esse o custo para derrotar o Eixo, o pacto entre Itália, Alemanha e o Império Japonês.

Alguns, mais velhos, viveram a guerra fria e seu pânico prolongado de um final do planeta para os humanos com a ameaça da guerra atômica. Outros, mais jovens, foram poupados disso. Puderam ou não se esquivar do final triste da Primavera de Praga, com a invasão massacrante dos tanques do Pacto de Varsóvia (1968), da crueldade inédita reeditada com o agente laranja, herbicida cancerígeno jogado pelos aviões americanos, que devastou boa parte das matas do Vietnã e deixou milhares de futuras crianças vietnamitas absurdamente deformadas. Tivemos depois a queda da União Soviética que derrubou a esperança de um socialismo melhor e assim seguimos…com outras primaveras que tornaram-se invernos…com a Bósnia…com a Síria…com os emigrados em massa.

Corre por vários canais a ideia de que o novo coronavírus não permitirá virar facilmente a página desse tempo. Uma das hipóteses é cairmos num mundo verdadeiramente orwelliano e huxleyniano, na medida, entre outras coisas, em que poderemos ser obrigados a aceitar um passaporte digital sob a forma de um nanochip, com todos nossos dados de vacinas etc. Teríamos implantados em nós um panóptico digital, na expressão de Pepe Escobar, que retoma Foucault em Vigiar e Punir. No entanto, tudo poderá seguir noutra direção.

O fato é que, nesse momento, estamos solitariamente, sem nenhuma atitude heroica, sentindo-nos, às vezes, mais como anti-heróis. Cuidando da casa, acompanhando as notícias das evoluções dos protocolos, sofrendo com a incerteza. E, atendendo os pacientes por plataformas da internet que dificultam, a meu ver, nossa escuta analítica porque alteram nosso olhar que precisa ser também flutuante. Mesmo assim, temos a surpresa de análises que ganharam muito na abertura para o desejo. Procuramos, por outro lado, lutar um pouco, talvez muito pouco, pela distribuição menos desigual das chances de vida na pandemia.

Contudo, podemos usar essa angústia da urgência para investigações que nos concernem, o que vem sendo feito, aliás.

Parece um bom momento para nos perguntarmos o que nos levou a reconstruir, depois da primeira grande guerra, depois da bomba, dos campos de concentração e extermínio etc, a mesma estrutura social em que cada um colocou seu tijolinho. E assim mantivemos o que Ailton Krenak, em seu livro “Ideias para Adiar o Fim do Mundo”, chama de “clube da humanidade”. Do qual 70% dos habitantes do planeta estão totalmente excluídos, tratados como a sub-humanidade.

Pesquisadores, médicos da linha de frente e biólogos e epidemiologistas e infectologistas que fazem um trabalho multicêntrico, apesar dos desmandos dos interesses da chamada necropolítica, põem a ciência a favor da vida. Como escreve A. Huxley, refletindo duas décadas depois do lançamento de seu livro “Admirável Mundo Novo”, poderemos ter uma ciência a favor do homem e não necessariamente apenas um mundo distópico.

O filósofo Slavoj Zizek, em um texto sobre a Covid-19, em janeiro desse ano, chama atenção para o fato de que o termo viral tão aplicado nos últimos tempos para ameaças na esfera da internet voltou a designar o que anteriormente designava, esse elemento que não é e é um ser vivo.

A caracterização do que, afinal, é um vírus é ainda controversa. Hoje, no entanto, os biólogos tendem a classificá-lo como ser vivo. Os vírus são capazes de evoluir e, graças ao genoma, transmitir suas características a seus descendentes. São unidades acelulares degeneradas com capacidade de interagir com a estrutura celular do hospedeiro. Porém, a definição mais forte que encontrei é: são seres mortos que ganham vida ao interagir com a célula hospedeira. Uma espécie de zumbi?

O verdadeiro admirável mundo novo, com nova economia redistributiva, com uma nova política, uma nova ética mundial, uma ciência não dominada pelos interesses econômicos dos Big Pharma…uma sociedade não utópica, mas livre poderia passar a existir para além da pandemia, se algo em nós, de fato, encontrasse a chave que se conecta com o desejo de uma ordem nova e “viralizasse”. Tal como o vírus, mas em direção oposta, que, por possuir a chave de conexão, pode ficar morto por milênios e voltar à vida ao encontrar uma célula de um ser vivo.

Krenak se pergunta, em seu livro citado acima, por que durante três mil anos nossas instituições construíram e alimentaram uma concepção de ser humano e de planeta que só limitam “nossa capacidade de invenção, criação, existência e liberdade? “Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida.” Estamos criando, escreve ele ainda, uma espécie de humanidade zumbi que não tolera a fruição da vida. (pg. 26/27)

A psicanalista argentina Marian Alizade inventou um conceito que permanece tendo valor. Concebeu um narcisismo terciário que nos levaria a investir libidinalmente pessoas para além das que nos cercam imediatamente, daquelas que pertencem ao “clube da humanidade”. Seríamos, então, levados a investir fortemente aqueles que se situam social e economicamente muito aquém de nós. Assim romperíamos com uma máxima do capitalismo selvagem: tudo que importa somos nós e nossa família.

Pergunto: não haverá em nós um desejo de solidariedade fundado em investimentos desejantes que vão, desde o início da vida, para além da família, que se dariam sob a forma rizomática e não arborizante, no dizer de Deleuze e Guattari?

Desejo negado que só vem à consciência, quando vem, em situações de urgência social, aquelas situações que provocam uma ruptura com nosso quotidiano e com nosso narcisismo habitual que estreita nossa subjetividade?

Nota – Admirável Mundo Novo (Brave New World na versão original em língua inglesa), romance escrito em 1931 pelo escritor inglês Aldous Huxley e publicado em 1932.

* Marilsa Tafarel é psiquiatra e psicanalista. Membro e professora da SBPSP. Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Autora de inúmeros artigos, capítulos em livros e do livro “Isaías Melsohn: a Psicanálise e a Vida”, em coautoria com Bela Sister.

Crédito: Valentin Antonucci, Pexels.com 



Comentários

One reply on “Um novo Admirável mundo novo*?”

Mauro Batista da Silva disse:

Sim, certamente são reflexões válidas, mas, as visões citadas me parecem extremamente materialistas. O homem só é capaz, quando crente no criador de tudo que existe! Somos senhores de si, isto é fato, porém quando “nomeamos” instituições como responsáveis pelo status quo, assumimos convivência, desinteligência, pois cada um, equilibrado, focado num objetivo maior de vida, uno com Deus, caminhamos rumo ao progresso. Focar em uma pessoa que se foi, principalmente sabendo que muitas outras causas poderiam fazê-la encerrar esta caminhada terrena, é tão irreal quanto as estatísticas de morte que incluem qualquer morte por “suspeita” na contagem de vítimas do Covid.

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