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Algoritmos = Significantes enigmáticos? Contribuições de Laplanche

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* Dora Tognolli

O professor  israelense Yuval Harari, autor do best-seller Sapiens, trata da história da humanidade de forma clara e instigante. Um de seus focos é a importância da informação, dos dados e do poder que gravita a seu redor. Explica como os algorítmos nos conduzem a decisões, consumos, escolhas, como se as operações matemáticas que ocorrem nas redes, abastecidas por nós, soubessem de nós o que ainda desconhecemos. Numa recente entrevista no programa Roda Viva, o Prof. Harari dá um exemplo: um sujeito que desconhece seu desejo homoerótico ao se relacionar com as redes fornece inputs que permitem que o algoritmo perceba antes dele esse desejo. Parece assustador, mas ele não oferece nenhuma explicação mística: trata-se de mistérios do algoritmo, que acompanha o passo a passo do qual o sujeito não se dá conta. A matemática explica, a lógica também. E a Psicanálise trata disto: desde sua constituição.

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Caminho de Laplanche

Laplanche nada mais é do que um grande admirador de Freud, que usa de seu rigor e inteligência para iluminar conceitos que ele coloca no rol dos fundamentos, do que é fundante, que não pode se perder dentre tantos escritos, comunicações e cartas de Freud. Laplanche chega a admitir que pratica uma espécie de “fidelidade infiel” a Freud: ignora certas considerações, enquanto que valoriza ou transforma outras, sempre baseado no próprio Freud, tomando em conta o conceito de tradução, que Freud e ele próprio problematizam.

A partir da correspondência de Freud, da tradução do alemão, do vocabulário de Psicanálise, em parceria com Pontalis, Laplanche tem na mão os roteiros que Freud trilhou e construiu, que merecem ser olhados em toda a dinâmica e complexidade. E os textos de Freud, como todos sabemos, contêm uma potência que permite que a cada leitura nossos sentidos avancem em direções inusitadas ou criem novos circuitos de entendimento.

O salto do Projeto (corpo biológico) para o capítulo 7 da Interpretação dos Sonhos (corpo erógeno), sem perder o corpo (sexualidade), é considerado um desses fundamentos. Nesses textos vão se estabelecendo a indestrutibilidade do desejo, seus caminhos diversos e o estatuto do inconsciente, um outro em nós, o estranho – Unheimlich, recentemente traduzido como  Infamiliar.

Conceitos interessantes de Freud são retomados, por exemplo, desamparo (Hilflosigkeit), temporalidade em duas fases (Nachträglichkeit que quer dizer, mais ou menos, carregar/trazer, depois; ou acrescentar algo a um escrito ou fala; ou numa outra direção, guardar rancor, não esquecer), tudo a ver com recalcado, resto, retorno do recalcado.

A ideia de situação originária ou fantasia originária, retomada por Laplanche, tem a ver com a origem, fundação, e não causa primeira. Essa situação é o mero confronto do recém-nascido (Hilflos = desamparado, abandonado) com o mundo adulto. Com a introdução do conceito de metábola coloca-se um hiato entre o inconsciente da mãe (que também lhe é estranho e enigmático) e sua cria, momento de fundação, onde se constitui um recalque primário.

Exemplo interessante trazido por Freud nos Três Ensaios, o aleitamento: o seio, que veicula alimento e significados eróticos e sexuais, dos quais nem a mãe se dá conta. Enigmas também para o adulto…

A sexualidade humana é portadora de mensagens enigmáticas para a criança que a recebe e por elas é marcada, e para o adulto que as emite, sem se dar conta do resto que também porta. A criança presente no adulto guarda essa marca do enigma e essa é a matéria-prima de suas mensagens.

Temos um primeiro tempo, anódino, de inscrição, reativado por um segundo tempo: daí o trauma em dois tempos. O segundo trauma ou acontecimento, que encontra o sujeito mais preparado, reativa o primeiro, ressignificado.  Laplanche nos lembra que o ataque vem da lembrança, vem de dentro e não do acontecimento. A transferência, na análise, seria um caso particular dessa revivescência. Em Freud, como bem aponta Laplanche, há sempre uma tensão entre a cena antiga e o roteiro recente: dois tempos.

Na carta de Freud a Fliess, de 21 de setembro de 1897, lemos: “não acredito mais na minha neurótica” – momento marcante, em que Freud coloca em questão os relatos de abusos de crianças por um adulto, muito frequentemente os pais, que surgiam no tratamento das histéricas. Laplanche volta-se a esse momento, em que o sexual está no cerne do conflito: presença marcante  do mundo interno, esse desconhecido produtor de fantasias que borram a realidade, o factual.

Ao tratar do sexual, da pulsional, Freud assumirá a etiologia sexual, subjacente ao conflito humano e ao sintoma, que escapa à compreensão do sujeito. Podemos afirmar, com Freud e Laplanche, que a sexualidade é traumática, deixa restos, em busca de retraduções e coloca em movimento o aparelho precário infantil, que assim se constitui. A figura do outro (mãe, por exemplo), surge para dar sentido, traduzir, incluir na cultura e, também traumatizar, uma vez que esse outro também porta seus próprios significantes enigmáticos. Caminho necessário para a entrada no mundo. De certa forma, saímos da sedução tout court, factual, para uma sedução generalizada, inexorável.

Cabe aqui uma expressão utilizada por Melanie Klein, que a partir do tratamento de crianças muito pequenas e com sua capacidade de observação, percebeu que o corpo infantil é uma espécie de bólido incandescente que no contato com a mãe [adulto] vai progressivamente esfriando.

Fogo, corpo, adulto-criança, trauma, enigmas, prematuridade, infans = sem fala: terreno propício por Laplanche retomar o conceito de sedução, necessário à constituição do psiquismo, e tratar dos significantes enigmáticos, como destino de todos nós. Eis aqui alguns dos fundamentos do psiquismo, que Laplanche toma como pilares, para tecer sua teoria.

Retornando aos algoritmos, medidas externas de nosso estranho, que escapa, Freud percebeu desde cedo que algo em nós tem um quê de estranhamento, de enigmático. E é essa matéria-prima de nosso ofício “impossível”, mas necessário, em especial nos dias atuais, em que o outro é facilmente confundido com o inimigo, que precisa ser aniquilado.

Dora Tognolli é psicóloga e psicanalista, membro efetivo da SBPSP e mestre em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (USP).

Crédito: Markus Spiske, Unsplash



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