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Sobre o uso terapêutico do ChatGPT e suas consequências  

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A ideia de fazer algumas reflexões sobre o Chat GPT, me ocorreu depois de ler em algum lugar que pessoas estão usando este assistente virtual como terapeuta, pedindo respostas para seus conflitos. Uma pergunta possível – e sempre devemos fazer perguntas e ter dúvidas – qual a utilidade desse uso e quais seriam as consequências desse fato?

Sobre esse assunto, me veio a lembrança algo mencionado no livro de Benjamím Labatut, A Pedra da Loucura, sobre uma proposição feita por William Lovencraft, ainda nos inícios do século XX. Esse autor postulou que os seres humanos são felizes por viverem na escuridão confortável de sua ignorância, tendo apenas alguns pontos de iluminação da realidade em que vivem, pois se fosse possível relacionar todos os conteúdos de sua mente a humanidade se defrontaria com uma realidade tão apavorante que a solução para não enlouquecer seria fugir da luz e voltar para o escuro, configurando uma nova Idade das Trevas.

Bom, temos agora o ChatGPT realizando essas conexões a partir da assimilação de bilhões de conteúdos interconectados que fornecem dados estatísticos regulares que uma vez repetidos milhões de vezes, capacita a máquina a fazer previsões e dar sequência a um texto seja científico, cultural sociológico e de tudo mais que se possa imaginar. A continuidade desta ação torna a máquina cada vez mais eficaz produzindo textos cada vez mais sofisticados e “inteligentes”.

Parece muito cômodo não? Afinal o chatbot está sempre à disposição, não exige nenhum sacrifício econômico ou de qualquer outra natureza e tranquiliza seu “paciente” usando palavras gentis na emissão de conselhos e sugestões do tipo lugar-comum, nos manuais de autoajuda. Achei muito interessante a opinião de uma linguista, citada na revista Piauí, que compara o ChatGPT a um “papagaio estocástico”- algoritmos capazes de regurgitar textos previstos a partir de regularidades estatísticas, mas sem compreensão do seu conteúdo ou de que estão fazendo aquilo”.

A psicanálise situa-se em um campo totalmente oposto. Ela tem por base uma característica singular e totalmente contrária: do ponto de vista psicanalítico, a mente se forma pelo contato do bebê com a mente materna, através das interações afetivas entre ambos durante os cuidados maternos fornecidos ao bebê.  Ou seja, todo nascimento e crescimento mental em qualquer idade pressupõe a existência de um par. Do mesmo modo, o diálogo analítico pressupõe um parceiro que possibilite interações emocionais entre as duas mentes.

A emoção é, portanto, o elemento básico que, se tudo correr bem, vai permitir a construção de um pensamento sobre essas vivências. Pensamento é aqui compreendido como o produto final de um processo complexo que se desenvolve a partir de uma emoção, convertendo-a em razão e palavra. Pensar, do ponto de vista da psicanálise, pressupõe tolerar a dor da frustração, a perda da onipotência e onisciência e o defrontar-se com a vulnerabilidade do não saber. Pensar exige espera e paciência para tolerar as angústias que assolam a mente pelo terror ao desconhecido.

Cada vez mais as pessoas parecem desprovidas dessa condição e cada vez mais buscam alívio imediato para suas angústias pelo uso de aditivos de natureza diversa – álcool, drogas, consumo compulsivo, exposição em redes sociais, manuais de autoajuda ou tudo isso junto. Note-se que essas soluções independem do parceiro humano: podem ser compradas ou podem criar para si mesmo uma vida de falso glamour, uma infinidade de “amigos seguidores” e até mesmo fazer sexo virtual sem sair de sua casa.

O Chat GPT mantendo a ilusão de “responder” ao que lhe é solicitado, parece mais eficaz que a consulta ao tarô ou a outros jogos advinhatórios. Sendo alimentado pelo amplo conteúdo coletado nas redes fornece respostas tomadas como verdades, permitindo ao usuário o sentimento de estar sendo ajudado.  A pessoa “faz de conta” que do outo lado está outro ser humano pensante. O chatbot instala o usuário/paciente em sua plácida ignorância de si mesmo, evitando a dor do conhecimento de sua realidade interna e externa. Isso pode caracterizar a Idade das Trevas – um mundo construído por ele mesmo instrumentado por seus desejos que por sua vez são determinados por um algoritmo alimentado pelas fantasias humanas. Cria-se um círculo vicioso onde o novo e o inesperado não têm lugar. Configura-se a morte da criatividade.

Psicanálise não é uma terapia accessível a grupos amplos ou a indivíduos socialmente desfavorecidos o que nos leva a perguntar como ajudá-los?

A psicanálise pode sim ser aplicada fora da intimidade dos consultórios.

O analista tem um papel importante pondo sua escuta privilegiada em disponibilidade para captar estados mentais de profunda angústia, desamparo, temores e mesmo aos estados terroríficos de perseguição e temor ao aniquilamento de si mesmo que ocorre em situações de profundo desamparo social e existencial. A escuta em níveis profundos permite ao analista treinado dar acolhida a esses estados, acompanhando o paciente na descida aos infernos da profunda angústia do seu mundo psíquico. O paciente sente-se acolhido e respeitado em sua individualidade e singularidade tratadas sem conotação moral ou valorativa.

O analista não se coloca no lugar de autoridade dizendo ao paciente o que ele deve fazer, mas o ajuda a encontrar um significado para aquilo que ele está vivendo. Para estar nesse lugar o analista deve ter um aprendizado longo e profundo conseguido principalmente com a experiência da sua própria análise pessoal.

As pessoas estão magnetizadas e encantadas com a inteligência do ChatGPT, mas há também muitas pessoas aterrorizadas com a progressão da Inteligência Artificial, na medida em que se perguntam que lugar terá o humano nesse novo mundo dominado por um algoritmo autoritário que determina o que comemos, vestimos, que música ouvimos, o que devemos aprender e até o que pensamos? Essas pessoas pressentem o perigo que a proliferação neoplásica de terabytes crescendo em escala infinita, poderá trazer à própria humanidade, tal como hoje a conhecemos.

A psicanálise terá importância fundamental nesse momento de transição da Era Antropocênica para a Era Tecnológica. Ela terá o papel de iluminar o caminho com a lanterna alimentada pela humildade do não saber, do não querer respostas para tudo, mas continuar pensando tolerando não saber e ter dúvidas. A chama vacilante do pensamento poderá impedir que a humanidade entre no atalho de regresso à nova idade das trevas.

Maria Helena de Souza Fontes é formada em medicina. É psicanalista, analista didata e psicanalista de Crianças e Adolescentes e membro docente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.

Imagem: Shutterstock (n. 2248035017

As opiniões dos textos publicados no Blog da SBPSP são de responsabilidade exclusiva dos autores.   



Comentários

3 replies on “Sobre o uso terapêutico do ChatGPT e suas consequências  ”

Lavínia Caroline disse:

Muito obrigada pela divulgação deste parecer sobre o tema, muito esclarecedor e instigante!

Daniela Torres disse:

Excelente texto e leitura desse momento. Estou instigada a pensar sobre os efeitos dessa inteligência artificial e onipresente nos processos de subjetivação.

Marina Abud disse:

Que rico e instigante texto! Nos faz refletir sobre onde nossa onipotência em ter acesso a tudo e nossa busca pela satisfação desenfreada pode nos levar. Muito interessante.

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