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Reflexões em torno da cura gay

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A Sociedade Brasileira de Psicanálise colabora com a Revista Psique.

Abaixo, trechos do artigo de Oswaldo Ferreira Leite Netto* para a revista Psique de abril de 2018

Não há fundamentação psicanalítica para algo que possa ser denominado cura gay. Psicanalistas, de posse de uma teoria científica que fundamenta uma prática clínica voltam-se radicalmente para a singularidade da vida mental de cada sujeito; nossos resultados buscados relacionam-se às verdades de cada um, para serem vividas com autenticidade, liberdade, autonomia e responsabilidade.

Freud com suas observações clínicas construiu uma teoria e esclareceu desde o início que a sexualidade humana não é natural, está diretamente ligada a fantasia, cada um pode buscar o objeto de satisfação de seu desejo, na obtenção de seu prazer nas formas mais variadas. Do ponto de vista psicanalítico torna-se difícil engajarmo-nos em propostas normatizadoras no tocante a busca de satisfação sexual, visto que não estamos determinados pela natureza como no instinto que opera nos animais. A vida sexual dos humanos é independente da procriação.

Aos analistas compete esclarecer e compreender as fontes de angústia em cada um de seus pacientes e ajudar a combater forças repressivas que tolhem as buscas de prazer, a liberdade e a criatividade. O contôle da moral, dos costumes, o cumprimento da lei competem a outras instâncias de nossas organizações sociais.

Consideremos a questão terminológica: a palavra cura não significa necessariamente, nem em medicina, a erradição de um mal, como se costuma empregar. Curar é cuidar, acompanhar uma evolução: como um queijo curado, como um curador de uma exposição, como o “cura”, ou pastor religioso que se ocupa de suas “ovelhas” ou fiéis. É nesse sentido que um psicanalista a emprega. E, é nesse sentido que poderíamos falar da cura de alguém que se intitula gay; mas não há tratamento específico para o que possa estar sendo denominado assim; é gay, se denomina assim ou denominamos assim em nossa cultura pessoas, agora mais visíveis e assumidas, que escolhem como parceiros afetivos e sexuais pessoas do mesmo sexo.

Uma célebre carta de Freud, datada de 25 de novembro de 1928, dirigida ao pastor e psicanalista Oskar Pfister, termina com esse parágrafo:

Não sei se você adivinhou a relação oculta entre a “análise leiga” e a “ilusão”. Na primeira, quero proteger a análise frente aos médicos, e, na outra, frente aos sacerdotes. Gostaria de entregá-la a um grupo profissional que não existe ainda, o de pastores de almas profanos, que não necessitam ser médicos e não devem ser sacerdotes. Afetuosamente, seu velho Freud (Freud & Pfister, 1966 p. 121, tradução e itálicos meus).

Este pequeno, singelo e claríssimo parágrafo não dá margem a dúvidas por onde deve caminhar e evoluir essa clínica cujas bases Freud lançou.

Para que sejamos dignos da herança freudiana, não devemos estar comprometidos nem com salvação de almas nem com curas. Freud, revolucionariamente, desvincula-se da medicina, incompatibiliza-se com terapêuticas que visam ao alívio somente e ao ajustamento, e desinscreve do registro religioso as questões da pessoa, de sua autonomia, liberdade e responsabilidade ética.

Considero a psicanálise um instrumento que nos permite ir além de normal e patológico, adequado ou inadequado, numa clínica emancipadora de pessoas, para enxergar e fazer enxergar a vida como ela é.

Quer queiramos, quer não, no mundo em que vivemos surgem, visíveis e legalizadas, outras formas de relação entre os sexos, novas modalidades de aliança e filiação. Homoerotismo, homoafetividade e homoparentalidade estão aí e dirigem várias perguntas a nós e a nossos modelos. Pessoas do mesmo sexo podem casar-se, e casais homoafetivos podem adotar crianças. O mundo se transforma e se organiza. Como analistas podemos oferecer ajuda e contribuições psicanalíticas às pessoas que nos procuram – pessoas querendo atenção, afeto, consideração pessoal, envolvimento, implicação (demanda psicanalítica) e vivendo escolhas afetivas e eróticas satisfatórias fora do modelo da família conjugal, já legalizadas por providências da sociedade.

Sustentar uma posição psicanalítica não é coisa fácil. Nunca foi. Estar na contracorrente nos é familiar e próprio da psicanálise desde o seu início. Para Freud, foi fonte de preocupações, de muito trabalho e muita competência e seriedade para permanecer no campo científico com a especificidade própria. Jean Laplanche (2001/2003) chama de “descaminhos” certas apropriações, aplicações e desenvolvimentos que a obra de Freud toma, exigindo de nós analistas que voltemos sempre ao que é fundamental, ao que define primordialmente a psicanálise e que dá o caráter singular da descoberta freudiana.

Vivemos num mundo medicalizado e dominado pelo poder médico. Constato visões médicas e medicalizadas não apenas nos interessados em psicanálise originários de cursos médicos, mas também nos que vêm de outras áreas e da própria psicologia, o que me leva a falar em vícios ou “doenças”, entre aspas, profissionais: o médico, pelo poder próprio ao saber e às práticas ousadas e heroicas, inadvertidamente pode ser levado à arrogância e à onipotência, caracterizando-se um “complexo de superioridade”. Os outros profissionais, submetidos a esse poder, inferiorizam-se, acham que deveriam ser médicos, não valorizam a liberdade e a possibilidade de expansão num campo, criado e proposto por Freud, que pode deixar o organismo de lado, sem ignorá-lo, claro, mas corajosamente confiando na potência das propostas psicanalíticas.

Debruçando-nos sobre a questão da homossexualidade (ou das homossexualidades) na atualidade, constatamos uma mutação: esta forma de viver e se relacionar entre os humanos se torna visível, reinvidica direitos e status e, sobretudo, pessoas assim docilmente aproximam-se dos psicanalistas, para serem analisadas e eventualmente querendo se tornar analistas, não considerando sua condição como patológica nem desejando mudá-la. Ao contrário das propostas evangélicas e dos argumentos da Igreja católica, que não desistem de se apropriar dos conhecimentos psicanalíticos, de desejar o status e a qualificação profissional de psicanalistas e oferecer a famigerada “cura gay”.

A escuta do psicanalista é não moralista. Um psicanalista oferece uma oportunidade de alguém ser ouvido e considerado por quem não seja juiz, polícia, pai, mãe, nem médico, e que se implica para perceber o mundo interior do outro e ajudá-lo a conquistar autonomia, liberdade, compromisso com sua verdade interior, autoridade pessoal, emancipação, autenticidade.

Considerando a(s) homossexualidade(s), penso que a psicanálise pode contribuir para sua despatologização e ser fiel a seu campo e sua prática, emancipadora através da valorização das singularidades – dificilmente oferecendo convincentes teorias explicativas, etiopatogênicas, como a medicina tem feito e faz com muito mais propriedade.

Nossa sexualidade, diferentemente da dos animais, não se vincula à reprodução. Não é natural. É aí que Freud se opõe à moral, à religião, ao senso comum e inaugura uma possibilidade de examinar a sexualidade como algo que escapa a qualquer tentativa de normalização. Supostamente o objetivo seria a procriação, mas nós humanos buscamos o prazer através da sexualidade: subvertemos e pervertemos o objetivo natural.

A relação da psicanálise com a homossexualidade é mais a de analisar a hostilidade teórica, clínica, contratransferencial e subjetiva provocada por essa escolha de objeto do que a de especular e teorizar sobre sua origem e funcionamento.

O que deveríamos focar como patologia e tentar formas de combatê-la é a homofobia.

Oswaldo Ferreira Leite Netto  é psiquiatra e psicanalista membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, onde ocupou a Diretoria de Atendimento a Comunidade. Diretor do Serviço de Psicoterapia do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.



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