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Pietà, a essência da não psicopatia

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O ser humano é surpreendente para o bem e para o mal. A primeira vez em que estive diante da Pietà de Michelangelo, em Roma, me marcou a emoção que senti diante de tão sublime e maravilhosa obra. Me lembro que, surpreendida diante da capacidade do ser humano, pensei:

Será o mesmo homem que constrói com tamanha perfeição, o mesmo que mata com frieza e crueldade?

É verdade que habitamos tempos sombrios e violentos; tornou-se perigoso e inseguro o viver, os jornais nos trazem notícias de guerra, ataques à democracia, ameaças à cultura, à educação, crimes, feminicídios, pobreza e tantas outras.

Tempos que nos fazem desamparados diante dos perigos, dos riscos; convivemos dia a dia com o perturbador ruído da maldade, da psicopatia. As personalidades antissociais estão em todos os lugares, na política, no mundo dos negócios, na criminalidade. Na esfera pública, o psicopata usa o poder em benefício próprio, na esfera particular ele destrói os vínculos, as relações, enfim destrói a família.

Mas quem é o psicopata? Ele parece um indivíduo como outro qualquer, é sedutor, carismático, mas está sempre em busca do prazer pessoal, mesmo que isso acarrete danos, sofrimento ou morte de terceiros. O essencial é que ele não é capaz de amar, não consegue ter empatia pelo outro, não consegue responsabilizar-se pelas suas ações, tem uma estrutura basicamente narcísica, e só pensa em seu bem-estar e conforto, portanto estabelece relações em que usa, abusa e explora o outro.

Na psicopatia não existe sentimento de culpa, não existe compaixão pela dor do outro, não existe solidariedade, o trato é frio, desumano e cruel.

Otto Kernberg descreveu a presença de um transtorno narcisista na psicopatia; os psicopatas demonstram em suas atitudes uma superioridade, grandiosidade e excessiva dependência da admiração, além de intensa inveja e desvalorização do outro como defesa contra a inveja.

A psicopatia é escrava da compulsão à repetição. Tem uma frase de André Green na qual ele diz: a compulsão à repetição assassina o tempo. O psicopata repete a compulsão, vai sempre fazer as mesmas coisas, dia após dia, não muda e não melhora.  

Christopher Bollas em seu livro a “Estrutura da Maldade”, cita a história da serpente seduzindo Eva; ele escreve: ˝…se a serpente foi a primeira presença malvada, então Eva deve ter sido a primeira cabeça oca: uma cabeça vazia que não retém os conteúdos mentais que afiançariam sua segurança e sua sobrevivência. Sua ambição, de fato, nos diz algo acerca do porquê a maldade faz dela uma presa fácil; Eva é guiada por seus próprios desejos de comer a fruta da árvore que lhe havia sido proibida, e o poder da sua ambição elimina o poder das outras partes de sua mente que poderiam havê-la mantido a salvo.˝

O processo da maldade, segundo Bollas, implica por parte do sedutor, cativar a vítima, cuja fragilidade é explorada de tal forma que as necessidades dela se transformem em sua própria perdição. O malvado aparenta ser bom e humano a vítima fica totalmente dependente da bondade, usando como defesa a negação, permanecendo cega para a realidade, e envolvida com a intensidade de suas próprias necessidades inconscientes. A vítima acaba muitas vezes deixando a própria vida nas mãos do maldoso, e acaba experimentando o assassinato de seu próprio ser, ficando sem identidade própria.

O interesse do psicopata gira em torno de seu benefício, ele não consegue se colocar no lugar do outro, não aprende com suas experiências, muito menos com a punição, está sempre buscando ter vantagens. Todos esses traços de personalidade fazem com que cometam crimes com frieza sem sentir emoções. Seu alvo está baseado em alguma obsessão formada por um trauma infantil, portanto escolhe uma maneira particular de cometer crimes, dependendo da sua experiência traumática.

Costumam escolher suas vítimas, pessoas com personalidades infantis, inocentes com pouco contato com a realidade, conseguem assim facilmente seduzir e manipular; é considerado também um perverso, portanto sente prazer com o sofrimento do outro. Reconhecer o psicopata é muito difícil, por este motivo muitas pessoas caem em golpes e são manipuladas em relações de abuso e agressividade e outras ainda são mortas. 

Segundo Bollas, a vítima quando descobre o lado cruel do maldoso, fica submetida a uma desilusão catastrófica de suas crenças anteriores, que resultam em sua morte psíquica, o self que acreditava em um destino bom, é subitamente assassinado, a vítima não se recuperara, o sedutor destrói as estruturas geradoras de representação, ficando somente a lembrança do aniquilamento e a falsa bondade se converte para a vítima, em sua morte psíquica.

O assassino sobrevive ao assassinato, seja físico ou psíquico de suas vítimas, e continua repetindo os seus crimes compulsivamente, é escravo da compulsão à repetição, ele não muda na realidade, não melhora o aspecto do uso do objeto; é incapaz de sentir compaixão.

André Green considerou o Holocausto a forma mais completa do mal. Segundo ele, o nazismo é uma cruel negação dos valores humanos e da ética, dois pilares essenciais da psicanálise.

Boris Cyrulnik em seu livro “Corra, a vida te chama”, consegue transmitir a violência cruel da perseguição e do assassinato dos judeus contando a história por ele vivida e suas experiências traumáticas, e nos oferece uma compreensão do sofrimento e as consequências deste no psiquismo e na vida. Boris nos conta a luta incessante de uma criança, um adolescente e um adulto para escapar da morte física e psíquica; ele é judeu, seus pais foram mortos pelos nazistas e ele, com apenas 6 anos, começa a fugir da perseguição dos soldados nazistas e depois de muita luta consegue sobreviver. Viveu muitos anos assombrado com traços de memória do passado traumático, sentindo sempre que atravessou a morte, e ela tornou-se experiência em sua vida.

A memória traumática é intrusiva e nos faz prisioneiros do passado, e essas imagens povoam nossos pesadelos. Fascinado pelo horror, o ferido se afasta do mundo que o cerca. Isolado entre os outros, sente-se só e expulso da condição humana.

Para Boris todo trauma modifica o funcionamento cerebral, não há como não ter consequências, mas quando se consegue modificar as relações, construir vínculos afetivos, as vulnerabilidades neurológicas adquiridas podem desparecer.

A Pietà com o Cristo adulto no colo representa a essência da não psicopatia, ela é a própria compaixão, ao mesmo tempo acolhimento e consolo para a dor do Cristo morto, e a sua própria dor, diante da impotência para ressuscitá-lo.

Me pergunto novamente como é possível que o mesmo ser humano sensível, que é capaz de expressar-se através da construção de obras sublimes é capaz de tratar os outros com desprezo absoluto e com tanta desumanidade?

Não, não é o mesmo homem, o que constrói é capaz de amar, de ser criativo, de ter compaixão, tolerância às frustrações, aprende com suas experiências, sendo capaz de simbolizar e sentir gratidão por suas capacidades.

O homem que destrói e que mata, não é capaz de amar, não tolera frustrações, não simboliza; é pura concretude, não aprende com suas experiências e sente prazer em destruir. O psicopata é frio e cruel, despreza a vida humana, debocha do sofrimento e, na sua onipotência, sente prazer com a impotência de suas vítimas quando ele consegue dominá-las, ao mesmo tempo acusa suas vítimas da maldade que ele próprio exerce.

Me pergunto, como não enlouquecer, não se deprimir, diante dessa nossa realidade violenta e cruel dos dias de hoje, como sobreviver sem morrer psiquicamente?

Talvez fortalecendo nossos vínculos afetivos, pois são os vínculos de amor que nutrem nossas almas e nos trazem a esperança de tempos melhores, sem ter que negar ou cegar-se para o real.

Como psicanalistas o que tentamos fazer é justamente valorizar e desenvolver a subjetividade e o humano, em contraposição com a destrutividade e a desumanidade…

A psicanálise contribui para a melhoria das pessoas que são capazes da defesa dos valores humanos, defesa da democracia, dos cuidados com o emocional e com a vida…

 

Referencias Bibliográficas:
BOLLAS, C., A Estrutura Da Maldade; Conseguido na Internet em PDF, 1992.
CYRULNIK, B., Corra, a Vida te Chama – Memórias, Rio de Janeiro; Rocco, 2013.
EIZIRIK, CL. (2020), Líderes, liderados, infâmias e resistência Livro Virtual, 33º Congresso Latinoamericano de Psicanálise, FEPAL.
FREUD, S. (2011) Além do Princípio do Prazer, Obras Completas, vol. 14; Companhia das Letras, 1920. 
GREEN, A., Narcisismo de Vida, Narcisismo de Morte; Escuta, 1988.
KERNBERG, O., Desordenes, Fronterizos y Narcisismo Patologico; Paidos, 1979.

 

Ana Cristina Melges Elias Banzato é membro efetivo da SPBSP e da SBPCamp. Membro efetivo e analista didata da ARPAC (Monterrey, México), e da Sociedad de Psicoanálisis de León-México. 

Imagem: Pietà (1498–1499), Michelangelo (Wikipedia

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