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Felicidade é para todos?

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Todo mundo quer ser feliz, mas, do ponto de vista da psicanálise, nem todos têm o “equipamento psíquico” necessário para isso. Estou falando de pessoas que não conseguem ser felizes mesmo quando tudo vai mais ou menos bem. Por que a felicidade parece mais acessível para uns do que para outros?

Para entender, precisamos de um conceito psicanalítico: luto primário. Atravessar o luto primário significa aceitar emocionalmente que o “paraíso” foi perdido para sempre, e mesmo assim a vida vale a pena. Graças a ele, caem duas fichas fundamentais: 1) perco a ilusão de que sou especial e posso tudo (como Sua Majestade, o Bebê) e por causa disso o mundo / a vida / as pessoas me devem. 2) perco a ilusão e, portanto, a expectativa, de que algo ou alguém pode e deve me gratificar / preencher totalmente.  

Quando caem essas duas fichas, está instalado o chip da aptidão à felicidade. E quando não caem, a vida será uma sucessão de murros em ponta de faca. Vou mostrar como fica nossa relação com a vida antes e depois do luto primário. Vamos imaginar que acabei de trabalhar e, para relaxar, quero dar uma caminhada pela praia. Para chegar lá, enfrento um sol forte, subidas puxadas e trilhas difíceis. Ainda não encontrei um barzinho para descansar e tomar uma cerveja.

Antes do luto primário: Não é justo que um mero passeio me exija tanto esforço. Vim aqui para relaxar, não para sofrer. Essas subidas íngremes não deveriam existir. Deveriam ter colocado um teleférico; deveriam ter colocado quiosques com cerveja; deveriam ter me avisado que as trilhas são difíceis. É uma falta de respeito comigo. Eu deveria ter ido a um resort, tem cerveja no bar da piscina, não preciso fazer todo esse esforço só para me sentar num barzinho e tomar uma cerveja.

Irritação e mau humor crônicos indicam que, inconscientemente, continuo esperando que o mundo / a vida / as pessoas estejam a meu serviço, que se dediquem a tornar minha vida mais fácil e a me gratificar plenamente. O que custava terem colocado um teleférico? O que custava terem colocado quiosques com cerveja. O pior é a conclusão: se “eles” podem, mas não querem, tornar minha vida mais fácil, é porque não me respeitam nem se importam comigo. E aqui vem mais um conceito psicanalítico: ferida narcísica. O problema não é o esforço, mas como interpreto o esforço. Só enxergo o copo meio vazio: zero aptidão à felicidade.

Depois do luto primário posso interpretar a mesma realidade de uma maneira completamente diferente. Que lugar lindo! O esforço da subida é amplamente compensado pela vista daqui de cima. Que bom que não poluíram este lugar com teleférico, nem com quiosques de cerveja.

Nessa segunda interpretação, este lugar / a vida / as pessoas não me devem nada. Se a caminhada é íngreme, não é nada pessoal, a dificuldade não me ofende, não é falta de respeito, não é contra mim. Posso gostar ou não. Posso querer ficar ou ir embora. Como não fico brigando contra a realidade, consigo desfrutar daquilo que existe, daquilo que é. Enxergo o copo meio cheio, isto é, consigo me relacionar com o lugar pelo que ele é, e não pelo que ele deveria ser. Apesar do esforço, passear por aqui é um prazer, e “conquistar” a vista é uma alegria. Alegria e prazer se potencializam, o que indica aptidão à felicidade.

Faltou dizer que é com a ajuda do ambiente que a criança (até uns 7 anos) elabora o luto primário. É doloroso, mas é a condição para desfrutar dos pequenos prazeres, e para conseguir conviver em relativa harmonia com as pessoas com quem compartilhamos a caminhada pela vida.

  
Marion Minerbo é psicanalista pela SBPSP, doutora pela UNIFESP, autora de artigos e de livros, entre eles “Notas sobre a aptidão à felicidade” (Ed. Blucher). 

Imagem: foto de Marion Minerbo 

As opiniões dos textos publicados no Blog da SBPSP são de responsabilidade exclusiva dos autores.   



Comentários

5 replies on “Felicidade é para todos?”

Jacqueline Schneider disse:

O luto primario e a aptidao para a felicidade podem ser adquiridos a qualquer idade. É algo que esta sempre disponível, e bem depois dos 7 anos, e pode ser acalçado por varias outros caminhos e relações sociais.

Sergio Kehdy disse:

Excelente reflexão. Esse conceito de ferida narcisica tem muita semelhança com o “uso do objeto de Wiinicott”. Gostei muito.

flavia steuer disse:

Marion
Aplaudindo por aqui sua capacidade de síntese, lindos e acessíveis recortes
baseados num rigor teórico.
Adorei, vou comprar o livro!
Beijo grande

Hilda disse:

De fato temos esta tendência de ver muito mais o difícil o complicado, o é melhor nem tentar pois é exaustivo para mim. Devemos trocar esta lente pela “vou conseguir fazer tudo que preciso para ser feliz”

Socorro Marinho disse:

Lindamente escrito! E o conteúdo necessário e urgente.

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