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Brincar para se tratar

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*Marion Minerbo

Olá, Ana Lisa, sobre o que gostaria de conversar hoje?

Olá, Marion, veja só que loucura! Estava na casa de uns amigos que têm um filhinho de um ano. Lá pelas tantas, quando ele ficou com sono, se deitou de bruços sobre uma mesa de centro revestida de azulejos e ficou se contorcendo de barriga para baixo, como uma minhoca, até adormecer. Os pais disseram que faz uns meses que ele criou este ritual e não dorme sem ele. Achei estranho, pois em geral as crianças escolhem lugares macios e quentinhos para adormecer. O que a psicanálise tem a dizer sobre isso?

Ele criou um ritual, mas também podemos dizer que criou uma brincadeira. Me lembrei daquela famosa que foi inventada pelo neto de Freud. A brincadeira era a seguinte: ele atirava um carretel para debaixo da cama exclamando “miu”! E depois puxava a linha e o recolhia exclamando “tou”! Freud entendeu que ele estava brincando de sumiu-voltou.

É verdade. Ele fazia isso quando a mãe saía de casa. Começou atirando o carretel, talvez para se livrar do pavor de ficar sozinho, mas depois acabou virando uma brincadeira.

É simplesmente genial. Em vez de sofrer passivamente o sumiço inesperado da mãe, produz seu desaparecimento ativamente. A graça da brincadeira é que, ao atirar o carretel, ele já sabe que este vai voltar. O pavor vai cedendo lugar ao prazer. A repetição acaba “domesticando” o trauma. A criança brinca para se tratar.

Entendo. Ela vai se dando conta de que há uma diferença entre o horror do abandono definitivo e uma simples ausência.

O repertório conceitual e emocional se amplia. Quando estão psiquicamente saudáveis, as crianças inventam continuamente novas brincadeiras para se tratar daquilo que as assombra. O filho dos seus amigos brinca de minhocar numa mesa gelada até dormir. De que “trauma” será que ele está se tratando?

Tenho um palpite. Mas antes, eu queria perguntar o seguinte: como alguém cria uma brincadeira para poder se tratar?

Excelente questão. Obviamente, para o neto do Freud, o carretel representa a mãe. Isto quer dizer que ele transferiualguma característica da mãe para o carretel. E ele escolheu o carretel para fazer esta transferência porque, para ele, ambos têm algo em comum.

Como assim? O que o carretel e a mãe têm em comum?

A mãe some e volta. O carretel também. Graças a esse traço em comum, a criança pode transferir o sumiço/retorno da mãe para o carretel. O carretel se torna um objeto investido transferencialmente como um equivalente da mãe. Nesse contexto afetivo, o carretel interpreta para a criança o que ela está vivendo.

Ah, agora é demais. Um carretel interpreta?

Claro! É por isso que brincar é terapêutico. Ao ser atirado para baixo da cama, o carretel “conta” para o menino que ele está às voltas com o problema do sumiço da mãe. Dessa forma, ele tem a oportunidade de perceber do lado de “fora”, de forma concreta, aquilo que o inquieta e assombra “dentro”. Num primeiro momento, antes dessa concretização, é uma inquietação vaga, sem cara, sem forma, e por isso mesmo, aterrorizante.

Hum. Então, ao ser resgatado, ao reaparecer, o carretel “conta” para o garotinho que, assim como ele voltou, a mãe vai voltar?

Isso. E agora vem o mais importante: é a criatividade psíquica da criança que lhe permite equiparar o carretel à mãe por meio do traço em comum. A criança faz uma associação livre, que é sinal de saúde mental.

Quer dizer que as características reais do carretel são importantes para que ele possa transferir o que precisa ser elaborado?

São. Um ursinho de pelúcia “aceita a transferência” dos aspectos acolhedores da mãe porque é macio e quentinhoJá o lobo mau “aceita a transferência” dos aspectos aterrorizantes da mãe.

Você está usando o conceito de transferência de um jeito diferente daquele que eu aprendi, que é a relação com o analista.

Sim, a transferência para o analista é um caso particular disto que estou descrevendo. Ele se dispõe a aceitar todos os tipos de transferência para que o paciente consiga reconhecer “fora” o que o assombra “dentro”. Mas voltando à situação que você descreveu: o bebê que precisa minhocar sobre a mesa gelada para adormecer.

Eu te disse que tinha um palpite sobre qual poderia ser o “trauma” do qual ele estava se tratando. Ele nasceu com um pequeno cisto na coluna. Com horas de vida fez uma ressonância magnética. E depois outras, até que os médicos decidiram operar. Depois da cirurgia fez novos exames para acompanhar a evolução.

Sempre com a barriga para baixo! Claro, seu palpite tem tudo a ver! Os bebês saem do útero esperando encontrar alguma continuidade do ambiente que conhecem. Mas este encontrou algo duro, liso e frio. Essa experiência sofrida e impossível de ser digerida certamente ficou gravada em sua memória corporal.

Pelo que entendi da sua explicação sobre o jogo do carretel, essas sensações desconhecidas foram traumáticas. Quando ele se deita sobre a mesa de azulejos gelados ele está sendo ativo lá onde antes foi passivo. Está recriando essa situação horrível para conseguir reconhecer “fora” o que ficou inscrito “dentro”, e assim ir se apropriando do que viveu.

“Ir se apropriando” é a expressão exata. A mesa de azulejos “atrai” o traumático porque tem traços em comum com a de ressonância magnética. O frio, duro e liso do passado é transferido para o presente. E por isso mesmo se presta a ajudar a elaborar o que ficou encruado no inconsciente. A mesa de azulejos “interpreta” para ele seu sofrimento inconsciente.

Posso até imaginar o diálogo entre o bebê e a mesa.

Ele: “Esta superfície gelada me dá medo e não sei bem por que. Sinto que é algo de estranhamente familiar.

Ela: Sim, você já viveu isto antes. Na época foi muito sofrido e você não tinha como entender que diabo era aquilo.

Ele: Reconheço vagamente esta sensação. Mas não tenho palavras para descrevê-la.

Ela: Então preste atenção em mim que eu vou te contar: eu sou dura, lisa e fria. Acho que são estas as palavras que você está procurando.

Ele: Ah, então é isso que me assombra desde sempre!

Adorei! Um diálogo dentro do nosso diálogo!

Fiquei com uma dúvida. Você disse que nem todas as crianças conseguem usar este recurso para se tratar.

Exatamente. Um ambiente emocional turbulento prejudica a instalação do chip da capacidade de brincar. E isso desde as primeiras horas de vida.

O quê tornaria esse ambiente emocional difícil para o bebê?

Em duas palavras: o inconsciente dos pais sempre dá trabalho para os filhos. Normal. Mas quando ele transborda demais e há uma “inundação”, a criança tem que gastar muita energia para dar algum destino a esse “material radioativo”. E aí sobra pouca energia para brincar. Podemos até falar mais sobre isso numa próxima conversa.

Com certeza! Muito louco tudo isso!

 

Texto originalmente publicado no blog Loucuras Cotidianas.

 

Marion Minerbo é psicanalista da SBPSP, doutora pela UNIFESP e autora de vários livros e artigos, entre eles “Diálogos sobre a clínica psicanalítica” (Blucher, 2016) | marionminerbo@gmail.com



Comentários

4 replies on “Brincar para se tratar”

Muniraakrouche disse:

Fiquei encantada pela organização de pensamentos aplicados para descrever o brincar da criança e a riqueza da interpretação psicanalitica. Parabéns Marion.

luiz meyer disse:

Oi Marion Abordagem muito inspirada. Vai da reconstrução do trauma precoce á reverie que pode ser praticada por objetos externos devidamente investidos. Aprendi, como sempre

Que delícia esse diálogo brincante e informativo!! Muito claro e esclarecedor!

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