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Do divã para o Zoom

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A situação inédita que estamos enfrentando com a pandemia da Covid-19 criou algumas urgências entre os psicanalistas: a necessidade de se adaptarem a novas possibilidades de atendimento, além da abertura de um espaço para o debate sobre as diversas questões que têm emergido. O vírus ultrapassou fronteiras de países e continentes e obrigou as pessoas a se fecharem para o contato direto com o outro. Ele também deixou mais evidente a vulnerabilidade humana, que compartilha os mesmos limites: a vida e a morte. 

Nesta entrevista concedida à revista Humanitas, Silvana Rea, da SBPSP, cuja formação engloba as áreas de Cinema, Psicologia e Psicologia da Arte, fala sobre o impacto da primeira e aguda fase da pandemia, que mobilizou pacientes e psicanalistas para uma nova fase e se mostrou ser uma oportunidade para reafirmar o compromisso desse campo clínico que é a Psicanálise com a reflexão e a abertura para o inédito, tanto na relação singular entre analista-analisando, quanto na construção de seus paradigmas teóricos. Confira a seguir.

Humanitas – Quais foram as principais mudanças na clínica psicanalítica em decorrência da pandemia da Covid-19?

Silvana Rea – A situação de isolamento social levou à migração dos atendimentos presenciais para os não presencias, possibilitados por meio da tecnologia. Muitos analistas nunca haviam feito uso dessas ferramentas em seus atendimentos, outros a utilizavam apenas em casos pontuais. Mas ficou claro que insistir em sessões presenciais neste momento poderia ser uma negação do potencial letal da doença.
Essa migração nos levou a estabelecer novos contratos com cada paciente. Alguns atendimentos passaram a ser por voz, via telefone, outros por Skype ou Zoom, com imagem ou sem imagem. Cada dupla encontrou seus parâmetros de conforto e intimidade. Cada dupla buscou qual seria o seu novo espaço de consultório no ambiente doméstico. Antes, os pacientes vinham até os consultórios, agora nós “entramos” em suas residências, carros, quintais.

O que essa situação, nunca vivida antes, exigiu dos analistas e seus pacientes?

Exigiu tolerância ao medo e mobilidade criativa. Criatividade é movimento de vida. Trata-se de um contexto que põe à prova o compromisso da Psicanálise com a reflexão e a abertura para o novo – tanto na relação singular analista-analisando quanto na construção de seus paradigmas teóricos e, neste caso, na adaptação de seu método a novas possibilidades. Mas talvez para nós, brasileiros, este seja um dos poucos momentos nos quais uma situação externa atingiu a todos e submeteu analista e paciente ao mesmo impacto disruptivo. Não apenas pela quebra da rotina quotidiana. Houve um choque representacional pelo ineditismo da situação. O objetivo passou a ser construir essas representações, algo que ainda está em curso. Esta simetria pode trazer o risco de o analista ser invadido pela mesma angústia de morte de seu paciente, um fenômeno que a psicanalista argentina Janine Puget chama de mundos superpostos. Uma sobreposição que pode levar o analista a perder, ainda que momentaneamente, sua capacidade de pensar psicanaliticamente, misturando-se às angústias do paciente ou as rechaçando.

Houve também momentos de forte desgaste emocional entre os psicanalistas. No início dos atendimentos on-line, muitos relataram sentir extremo cansaço. Por que isso ocorreu?

Em parte, isso decorreu da mudança do encontro presencial, que é quadridimensional e passou a ser bidimensional, dificultando a criação de um espaço de potencial criativo tão caro para a Psicanálise, tanto do ponto de vista teórico, quanto da prática clínica. E também porque trocamos o  contato ao vivo por uma imagem na tela. E ainda porque notamos nos pacientes um recrudescimento de angústias, o que exigiu maior esforço de simbolização e de metabolização por parte dos analistas. Soma-se ainda que o fato de no jogo transferencial / contratransferencial ambos estarem mergulhados no mesmo mar de incertezas e fragilidade: o esforço inicial urgente para mantermos a capacidade de simbolização e metaforização foi grande. Penso que em momentos de incertezas e fragilidade não podemos correr o risco de ter a falência da palavra e de seu sentido, que na verdade seria perdermos nossa força de vida e cairmos no vazio – e isso é fundamental nesse contexto. Aos poucos, o primeiro impacto foi sendo absorvido, mas ainda precisamos de tempo para compreender mais profundamente as vicissitudes do que do que estamos vivendo. 

Podemos dizer que isso gerará trauma?

A psicanalista israelense Yolanda Gampel traz a imagem de núcleos radioativos para referir a persistência de aspectos traumáticos provocados por situações sociais e externas. Algo que atinge a pessoa e que pode se manifestar tempos depois, chegando à transmissão transgeracional. Outros preferem considerar a noção de acontecimento do filósofo Alan Badiou como algo fora do normal que acontece subitamente e irrompe o fluxo das coisas, o encontro com algo novo que pode ser potencial ou não. 

A pandemia também expôs a desigualdade social. Esse reconhecimento foi motivo para muitas instituições se engajarem com o outro, com os mais vulneráveis. Quais foram as iniciativas da SBPSP?

Do ponto de vista institucional, houve uma expansão da clínica extramuros. A maior parte das instituições psicanalíticas se mobilizou para atendimento emergenciais. A SBPSP, por exemplo, organizou atendimentos pontuais on-line gratuitos a profissionais de saúde, que se estendeu para atendimento a toda a população. O que nos remete ao ano de 1918, quando em seu discurso no V Congresso Psicanalítico de Budapeste, Freud afirmou que a Psicanálise deveria ser um direito de todos os cidadãos e que caberia ao setor público o atendimento daqueles que não pudessem pagar. Essa posição estimulou a posição das policlínicas psicanalíticas que floresceram no período entre guerras até a ascensão do fascismo, como nos mostra Elizabeth Ann Danto em seu livro As clínicas públicas de Freud. 

Quais têm sido as principais queixas trazidas para a clínica pelos pacientes e como os psicanalistas estão lidando com elas?

Esta é uma situação inédita, levando alguns a afirmar que são tempos de exceção comparados a estados de guerra, exigindo tolerância ao não saber, o que gera muitas angústias nos seres humanos, sempre em busca de certezas, ainda que ilusórias. Mas já entendemos que a pandemia inaugurou um processo de luto que está em curso, uma vez que não há para onde voltar; essa experiência já mudou tudo e todos. Um luto pelos que se foram, por um modo de viver e de pensar. Este é o pano de fundo das sessões atuais e é a realidade externa comum a analistas e analisandos, que se alterna e se sobrepõe às questões internas. É claro que algumas pessoas, mobilizadas por questões narcísicas, não podem viver o luto. Do mesmo modo que a pandemia pode levar a processos de identificação empática com o outro, os aspectos destrutivos do narcisismo promovem discursos de ódio e de anulação do outro.

Poderia apontar outras questões que se sobressaem?

O medo pelo contágio e pelo adoecimento, o desamparo pela ausência de notícias confiáveis e de liderança consistente agudizaram certas questões pessoais. Medo de ficar só, de morrer só. Há relatos de um sentimento de vazio, e escoamento do sentido identitário, que para alguns provocaram voracidade e impulsividade em episódios de compulsão alimentar, excesso de álcool e aumento do consumo via internet. Outros se colaram ao real, contabilizando o número de mortos e infectados, em parte acreditando obter algum controle da situação desse modo. Muitos redescobriram o convívio familiar. Outros entraram na onda negacionista, evidenciando um sentimento de onipotência. A perda é a tônica dessa angústia de esvaziamento, que ora se manifesta às claras, ora por suas defesas. Muitos passaram por fortes angústias ligadas ao temor pela morte de entes queridos ou falência de seus negócios.

Algumas pessoas relatam que este é um tempo perdido. Isso foi visto na prática clínica?

Sim. Muitas foram as queixas de que se está perdendo tempo, de um ano jogado fora, de um período letivo que não existiu, de meses de vida desperdiçados. Em parte, estas manifestações estão ligadas a uma experiência temporal particular que o isolamento trouxe. Uma temporalidade monótona em um contínuo presente-futuro, gerando um tempo agora eterno de expectativa. Esta experiência acentuou as fragilidades  narcísicas em uma sintomática experiência de tempo que se assemelha a uma anorexia do viver como indica André Green, promovendo um sentimento de dissolução de si. Mas todas essas manifestações, que se mostraram de forma mais aguda no início da pandemia, não apenas se ligam ao pano de fundo social, do risco de morte e ausência de um chão confiável, têm ligação com a história singular de cada um. Sim, e nesse sentido cabe lembrar que a escuta psicanalítica é sempre uma escuta deslocada.

Poderia explicar o que seria essa escuta deslocada?

Se a Psicanálise nasceu em pleno positivismo no Século XIX, que buscava um sentido único pela razão e pela ciência, Freud vai pela contramão: ele escuta o que estava exilado nos hospícios e manicômios, compreendendo o sofrimento das pacientes histéricas como conflitos e assim insere um tipo de pensamento de “desrazão”, estabelecendo o seu pilar epistemológico e clínico na noção de inconsciente. A proposta de uso do divã é emblema desta escuta deslocada, flutuante, atenta aos deslizes e às lacunas, que leva a Psicanálise a ocupar os umbrais do ainda não dito, daquilo que escapa. Qualquer processo de análise refere-se a múltiplas narrativas, aquela que o paciente traz como entendimento de si, as que ficam de fora e todas as outras que no decorrer do trabalho analítico são construídas pela dupla no jogo do campo transferencial, um espaço de trânsito contínuo entre real e imaginário entre  a realidade objetiva e o conflito psíquico, a interna e a externa. Cada angústia, ansiedade, dor pode ser entendida, sim, a partir da vivência da situação da pandemia, que é um disparador. Mas cabe ao analista ampliar simbolicamente esta primeira apresentação tão aderida à realidade e estabelecer relações com a história singular de cada analisando, descolando-o do acontecimento concreto para que se construa a ampliação no sentido do que está sendo vivido – e suas possibilidades. 

O modo como as instituições brasileiras olharam para a pandemia da Covid-19 causou desamparo em parte da população. Qual o seu olhar para esta situação?

A experiência de desamparo se dá em vários níveis. Os brasileiros foram divididos entre quem pode ficar em casa e quem precisa se expor nas ruas. Entre casas que oferecem condições e outras que não, entre quem tem onde morar e quem vive nas ruas, uma evidência de nossa desigualdade social que se remete à ideia de necropolítica, de Achile Mbembe. E se retornarmos a 1915, em Reflexões sobre tempos de guerra e de morte, Freud diz que um dos efeitos letais dessas situações extremas é a desorientação de  mensagens antagônicas e a destruição das referências sociais. A falta de uma liderança coerente e que assuma a responsabilidade por medidas protetivas fragiliza a confiança na capacidade de proteção e na força das instituições e remete a população à sensação de desamparo.

O mesmo poderia se dar em relação às propagandas fake news?

As informações falseadas criam um discurso que não sustenta a realidade, criam uma pseudorrealidade, que tem potencial de alienação. Quanto mais desamparado estiver o ser humano, maior será a sua busca por abrigo nas certezas – uma busca por um ideal totalizante que leva ao risco de colocar líderes no lugar de salvador. Freud aborda essas questões em Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921). Quando o luto é negado pelas lideranças, que tratam com desdém a dor alheia, o quadro que se estabelece é da impossibilidade social de se viver o processo de perda com todas as suas implicações. Importante lembrar que o luto é um processo fundamental para o ser humano. Entre outras coisas, ele promove a saída do narcisismo em direção à alteridade e promove a criação de um fluxo representacional. Cabe às lideranças contribuir para a criação de um meio social que seja facilitador para a elaboração construtiva desta crise sanitária mortífera por meio de posicionamentos públicos que estimulem o pensamento plural e os consequentes respeito ao outro, solidariedade, consideração não narcísica e responsabilidade social.

Crédito: Revista Humanitas 

Imagem: Anna Akhmatova – Amedeo Modigliani, 1911 (Domínio Público



Comentários

One reply on “Do divã para o Zoom”

luiz meyer disse:

Lucides, erudição, pensar agudo ,elegância expositiva
Que mais dizer da fala de Silvana? Talvez que dentre todos os profissionais
nós os psicanalistas tivemos o privilégio de continuar trabalhando “normalmente” com nossos
pacientes, mantendo as sessões e o seu ritmo, correndo o risco de naturalizar esta
neoforma de atendimento

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