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Bem-estar na civilização

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A convite de uma sociedade psicanalítica colombiana, no dia 2º de novembro passado participei de um debate em torno d’ O mal-estar na civilização, de Freud, texto que é posto em discussão a cada par de anos em função de mudanças em nosso viver social.

Sob o impacto dos recentes resultados das eleições no Brasil, abri minha fala com uma afirmativa bem-humorada, dizendo que seria impossível me ater ao tema: naquele dia falaria por outro ângulo, ou seja, falaria do “Bem-estar na civilização”.

Saía derrotado daquele pleito um nome fortemente atrelado a uma visão negacionista da cultura, da ciência, da importância da saúde, de um Estado em defesa das necessidades da população. Perdera nas urnas um candidato que advogava o primado da economia com o lema do cuidado com a política fiscal, que aliás foi tremendamente burlada por investimentos voltados à reeleição. Por quatro anos assistimos a uma apologia das armas, à destruição da cultura e da ciência, ao trato inacreditável do desafio de uma pandemia, ao destrato da questão ambiental, à difusão de mentiras mirabolantes; tivemos de suportar um mandatário que seria risível, não fosse a destruição que acompanhou seu percurso; por fim, fomos inundados com a visão onipresente de bandeiras de cunho fascista. Era aterradora a perspectiva da permanência desse estado de coisas por mais um mandato. As razões de meu bem-estar na civilização não podiam ser mais evidentes.    

Como sabem, o texto freudiano trafega na contradição entre a satisfação dos anseios, desejos, pulsões, e as necessidades do viver grupal e das imposições civilizatórias. Esse eterno conflito seria traduzido como um mal-estar. No entanto, sempre lembro que Ulisses, preso na ilha de Calipso — contemplado com a perspectiva da imortalidade e da eterna juventude, com todos os seus desejos saciados pela beleza da ninfa e gozando das delícias das melhores comidas e bebidas —, chorava todas as tardes ansiando se libertar dessa armadilha. Seria seu sofrimento causado pela saudade de Penélope, sua esposa? Alguns comentadores se fixam nessa ideia. Já eu prefiro pensar que ele não conseguiu se libertar do anseio pela vida e sua eterna aventura:  Ulisses estava preso numa espécie de Dia da Marmota.

Ao mesmo tempo, em inúmeros textos Freud assinala como a percepção da realidade se revela a melhor opção, e como a função da psicanálise implica uma ampliação do pensar e seu consequente bem-estar. Lembrei como, na sequência de um bom concerto, trabalho melhor durante dias. Lembrei dos imensos prazeres que todo âmbito da cultura pode trazer, na poesia, nas artes plásticas, nas canções, em ensaios que me desafiam e tantos outros. Lembrei como o prazer e a criatividade podem ser vividos num ambiente democrático.

É frequente em nosso meio a ideia da produção de pensamento e dos sonhos numa relação entre pares, numa relação continente-contido, e sempre me pergunto qual e como seria o continente do continente. Se posso pensar no pai como continente da mãe que se devota ao seu bebê, isso não me parece suficiente. Penso que toda a cultura se torna continente do continente, e nessa circunstância se desenvolve nosso trajeto pela vida — e assim é com o conjunto da sociedade e da cultura. Aliás, voltando ao tema do encontro promovido pelos colegas colombianos, o bem-estar vem na sequência de um mal-estar. Esse pêndulo dialético é permanente.

Não acreditava que a alegria daquele momento pudesse ser permanente. O novo elenco dirigente não seria mítico ou messiânico — atributos da esfera do desejo dos seguidores do candidato derrotado, que surpreendentemente era chamado de “mito” e tinha “Messias” como um de seus prenomes. Epítetos de que o candidato gostava, e que lhe possibilitavam fartas aproximações religiosas.

Mas eu estava também muito satisfeito por alguns membros da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo terem tido a iniciativa de escrever um manifesto, sem meias-palavras, se posicionando explicitamente diante das opções em jogo. Com a adesão de profissionais psicanalíticos de outras instituições, obtivemos mais de 3 mil assinaturas. Ressalte-se que o documento circulou apenas na véspera e na antevéspera da eleição. Esse fato não só me alegra como me deixa orgulhoso de pertencer a essa instituição.

Hoje a alegria já não está tão presente — voltamos à rotina e, como Ulisses na ilha de Calipso, voltamos não ao bem-estar, mas ao estado conflituoso da vida. Novos desafios nos esperam no horizonte. Nosso passado colonial, escravagista e de uma economia extrativista nos põe à prova, assim como nossa dívida social, nossa tradição racista, a precarização social advinda de um sistema econômico neoliberal, a questão climática, os povos indígenas e tantas outras. Caminharemos inevitavelmente por êxitos e fracassos, mas não no fio da navalha, como nos últimos quatro anos: permaneceremos em ambiente democrático, atmosfera essencial também para nossa prática científica e clínica.

Penso que, como profissionais interessados nas origens do pensamento, também podemos pensar nas ideologias que obliteram a visão da permanente alternância do estado de espírito que nos acompanha na cultura e na civilização. Ideologias que de um modo alijado do consciente naturalizam o que é construção humana. Tiram da percepção o que é da área social, econômica ou histórica e se apresentam como dados da natureza.

Assim, prosseguimos…

Leopold Nosek é analista didata da SBPSP. Prêmio Sigourney Award 2014. Autor do livro A disposição para o assombro (Ed. Perspectiva). 

Imagem: A fantástica cave com Odisseu e Calipso (Jan Brueghel, 1568–1625) – Wikimedia Commons 

As opiniões dos textos publicados no Blog da SBPSP são de responsabilidade exclusiva dos autores.  



Comentários

10 replies on “Bem-estar na civilização”

Patricia Spada disse:

Muito bom!! Leve, bem humorado, profundo. Um bálsamo! Obrigada!

Cíntia Buschinelli disse:

Cultura : continente do continente .
Uma ideia incrível, de tirar o fôlego .
Beleza , Leo

Luciana Saddi disse:

Quando escrevemos um manifesto em favor da democracia e nos colocamos contrários aos arroubos antidemocráticos não apenas pensamos em defender a polis e o regime republicano, defendemos a própria psicanálise que não viceja em ambientes que suspendem o estado de direito e as liberdades individuais, civis e de expressão.

Luís Fernando de Nóbrega disse:

Isso mesmo!

NEYLA R A F FRANCA disse:

Leo muito pertinente, claro e criativo seu texto.

Julio Gheller disse:

Muito pertinente a ideia do bem-estar na civilização. Tivemos como inquilino do Planalto uma espécie de bufão, de comportamentos próprios das antigas chanchadas do cinema brasileiro. Seria cômico se não fosse trágico por toda a destruição produzida em quatro anos. O manifesto dos psicanalistas indica a necessidade de estarem conectados com a realidade externa aos consultórios.

elisabeth antonelli disse:

Que possamos reconstruir a cultura, e voltar a sonhar!

Susana Muszkat disse:

Leo, muito oportuno teu texto. Também fiquei orgulhosa de termos rapidamente feito um manifesto que, tanto quanto psicanalistas, nos posicionasse também como cidadãos políticos que somos.

Maria Luiza disse:

Apreciei está ideia da cultura como continente do continente, afinal Freud nunca deixou de pensar na cultura a par com a clínica. Continuamos, como psicanalistas, cidadãos do mundo. Obrigada, Léo.

Luís Fernando de Nóbrega disse:

Ótimo Leo. O Bem Estar que a Cultura nos proporciona Verdade mesmo, quantas vezes experimentei um tal bem estar após ver uma exposição em um museu! O Bem e o Mal estar fazem parte da existência e, precisamos desenvolver Continente psíquico para esses momentos. Obrigado.

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