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A dolorosa descoberta de si mesmo

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“O herói nasceu do mito. Da separação do mito e da alienação da realidade nasceu o herói, e nasceu a história, a ação do homem dentro do tempo. A mais fascinante aventura da invenção humana.” (O que é Herói, de Martin Cezar Feijó – Brasiliense, 1984).

Durante muito tempo Charlton Heston (1923-2008) foi o meu modelo de herói. “Como controlar as nossas emoções da infância?”, diz Fernanda Torres num artigo dela sobre o ator, em dezembro de 2012. “Amo Charlton Heston à loucura”, ela diz. “Sei que hoje em dia isto não é de bom tom. Mas ninguém mais conduziu os cavalos com tanta dramaticidade e se comoveu com o rosto em cinemascope, tomando nos braços a frágil mãe no leprosário. Heston se contorce quando ama e quando odeia. Ele carregava na corcova o peso da dor e do sofrimento humano.”

Ben-Hur faz o ciclo completo do herói. Perde tudo o que tem, não se deixa seduzir pela riqueza e o poder, deixa-se levar pelo vento do destino, conhece o mal e as dores humanas, e retorna para casa provado, virtuoso, sem se deixar corromper, com direitos a uma vida simples e anônima. Ulisses retorna para casa, mendigo e irreconhecível, depois de 20 anos. Retorna para o amor de Penélope. Ben-Hur e Ulisses preservam a capacidade de amar na adversidade, lembrando Dom Quixote e o amor pela Dulcineia, um amor por escolha de um homem livre. Salvando a si mesmo o herói salva toda a humanidade. O amor dialoga com o mundo, supera o sofrimento, as barreiras sociais, a distância e a cultura. E ainda cria um herói com alma.

Hércules, Sansão e Ulisses, só no cinema. Heróis de um tempo mítico e fantástico, numa época na qual a ação dos deuses estava muito presente no cotidiano do homem. Feijó (1984) diz que esse cenário se modificou com o surgimento do teatro grego, Ésquilo e Sófocles (“Édipo Rei”), por exemplo, quando os dramas humanos passaram a ser encenados, com possibilidades de catarse, quer dizer, experimentar as tragédias de modo simbólico, a participação transferencial da plateia. Freud irá propor algo parecido com o surgimento da psicanálise, tragédia num ambiente protegido, com possibilidades de tornar consciente o inconsciente.

Na época da minha faculdade eu tive um amigo (entre outros muito queridos) que se chamava Barbante. Na minha inocência achava tratar-se de uma alcunha. “Você se chama Barbante, mesmo?”, perguntei certa vez. E ele com a mesma inocência me respondeu: “E você se chama Clarisvaldo, mesmo?”. Eu não tinha ainda naquela época a ideia da relação simbólica dos nomes com as coisas. Depois disso seguimos nossos destinos, cada um à sua maneira. As notícias que tive mais tarde é de que o Barbante se tornou um bom médico ginecologista. Mas antes disso se tornou notoriedade na faculdade pela pena de um amigo do nosso grupo que era artista, o Ronaldo da Cruz. Retratado no personagem de uma tirinha em quadrinhos no Epiplon, periódico oficial do Centro Acadêmico Gaspar Vianna, O Cordone, meio que um anti-herói, tipo Recruta Zero. Sinto falta dos meus amigos dessa época, éramos jovens, cheios de graça e de criatividade, com um futuro de aprendizados nos esperando.  

Há alguns anos assisti uma aula de um psicanalista do Sul, Dr. Celso Gutfreind. Entre outras coisas, muito espirituoso, ele contou certa vez ter atendido Mário Quintana no PS de um hospital de Porto Alegre, Mário estava com sangramento nasal. “O que é que eu tenho?”, perguntou o escritor. E o colega respondeu: ”Epistaxe hipertensiva”. “Nossa”, respondeu o Mário, “que coisa linda!”, e anotou. Os poetas têm um outro jeito de lidar com as palavras. Poesias. Narrativas literárias. A maioria de nós só vê coisas e diagnósticos.

Sobre isso, vocês se lembram da Celie sendo alfabetizada pela irmã, no “A Cor Púrpura” (Spielberg, 1985)? A irmã colocava pedaços de papel com os nomes das coisas em cada coisa: cadeira, mesa, xícara, prato… E colocava um outro na testa da Celie: “Celie”. Coisa de gênio, não?! O nome é uma individuação no caos cotidiano. Celie tinha premência de aprender, para continuar conversando à distância com a irmã, e também escrevendo para Deus para que Ele ficasse mais perto.

A figura cultural do herói se modificou ao longo da modernidade. O herói épico deu lugar ao herói cultural, o artista, o escritor, e também ao herói desajustado, o herói sem nenhum caráter, tipo Macunaíma (sarcástico, irreverente, e que não se leva muito a sério). O herói se tornou um ser confuso e cheio de dúvidas. No caso brasileiro tendo que “negociar” com as adversidades de um país meio à deriva, sem um mito fundador e guerreiros unificadores, apesar do esforço de José de Alencar com a história de Moacir, “o filho do sofrimento”, fruto do amor do colonizador com a indígena (“Iracema”, 1865). E do esquecido Tiradentes, cujos autos de condenação e execução estão entre as páginas mais cruéis da história da humanidade.

Na cultura pop o herói se confunde com a celebridade. Joseph Campbell diz que o herói é sensível às necessidades de seu tempo. Os Beatles, p. ex., ocuparam o lugar de uma carência, trouxeram a dimensão espiritual e a meditação oriental numa época dominada pelo militarismo. Assim surgiram os hippies. E de certo modo voltamos ao nomadismo bíblico dos judeus, contra o poderio bélico do Egito, e escolhemos ser coletores de maná no deserto.

A cultura está sempre em recuperação, nos moldes dos biomas naturais. “Meus heróis morreram de overdose, meus inimigos estão no poder.” (Ideologia, Cazuza, 1987). “Eu não sou besta pra tirar onda de herói. Deus me livre, eu tenho medo, morrer dependurado numa cruz.” (Cowboy Fora da Lei, Raul Seixas, 1987). E tem também o herói patife, à Charles Chaplin. Quando ele, ao lado da namorada, Pauline Godard, na beira de uma estrada desértica e poeirenta, sonha um projeto de casa tipo Jardim do Eden, uma vida coletivista cheia de fartura. Quando ele vê o cenário à sua volta, dois mendigos sem eira e nem beira, todo heroico se levanta e faz um manifesto: “Nós haveremos de ter tudo isso, nem que eu tenha que trabalhar.” (!!) (“Tempos Modernos”, 1936). Rimos, natural. Mas estamos rindo de nós mesmos, da nossa própria miséria?

Existe um ser mitológico da cultura judaica que se chama “Golem”, um ser primitivo, meio parecido com um macacão gigante, meio hominídeo. Representa Adão antes do sopro divino, um pedaço de barro que ainda não se tornou um homem. Significa também tolo, imbecil. Pra nós talvez possa ser traduzido como desgraçado. O Golem representa todos os males, perseguições e preconceitos, todas as formas de intolerância, os regimes totalitários. O homem que ainda não descobriu o seu destino histórico gasta a sua própria vida para prejudicar a vida dos outros. Existe um filme, “O Golem”, tcheco, de 1920, da época do expressionismo, a representação sombria do mundo. “O homem não é senão o sonho de uma sombra.” (Píndaro)

O herói é alguém que dá a sua vida para algo maior do que ele próprio. O herói coincide com o sentido da vida, quando a vida se torna livro, e se torna história. A ideia grega do herói supõe virtudes, ser modelo de valores, viver de forma coerente. Campbell diz que não existe o “simples mortal”. Todas as pessoas contém em si o conhecimento, a saúde, e as forças que construíram o mundo no qual vivemos. “Ou vivemos a nossa própria aventura ou definhamos”, ele diz. Ou vivemos como uma divindade acima da vida, ou vivemos como uma pessoa. E isto significa escolher a frustração, a pobreza e o sofrimento. E enfrentar os nossos inimigos: a velhice, a doença e a morte. Viver é se lançar para a morte e para a ressurreição (Campbell). Uma dádiva do Céu, um lampejo de Sol.

Mário Quintana (1906-1994), disse certo poema que a solidão é ouvir o próprio coração no silêncio e na escuridão da noite, as extrassístoles. Os sobressaltos, o sentimento de estar vivo. A solidão é viver a perenidade, não nascemos com o dom da eternidade. Os demônios que conseguirmos engolir nos transferem o seu poder (Campbell). “Quanto maior a dor da vida, maior a resposta da vida.” É preciso viver no tempo como um verdadeiro ser humano, dizer sim à existência. Em quanto dormimos se plasma e nós nos nossos sonhos inconscientes o tempo, o espaço e a eternidade.

Talvez alguém se lembre do “Evangelho Segundo São Mateus’ (Pasolini, 1964). Nenhum ator internacional, nenhum Ben-Hur. Um filme em preto e branco com elenco de amadores. Nada mais acertado do que isso. Amadores interpretando amadores. O Cristo e os apóstolos eram amadores, se apresentando pela primeira vez. Estreantes, sem nenhum preparo prévio, e sem entender completamente o curso das coisas. Algo que evidencia ainda mais a crueldade da crucificação.

Assim, todos somos amadores, estreando na tela do cinema do bairro, em primeiro plano, apenas com um rosto e com um nome. Ben-Hur, Barbante ou Clarisvaldo, não importa. Estreamos em cinemascope com a dor que conseguimos suportar. Mendigos, sem forças, e sem entender. Queremos ser o herói dos filhos, mas terminamos bêbados, cheios de xixi, no passeio público, na calçada sem fama, atrapalhando a construção. Nossa moeda tem dois lados, a cara e a coroa.

“Temos apenas que seguir e lá, onde temíamos encontrar um monstro, encontramos um deus, onde esperávamos encontrar inimigos encontramos apenas nós mesmos, esperávamos viajar para longe vamos ao centro da nossa existência. E, onde pensávamos encontrar a solidão, encontramos a companhia do mundo todo.” (A jornada do herói, de Joseph Campbell, 1990).

Clarisvaldo Rapeli é psicanalista pela SBPRJ e membro associado da SBPSP. Diretor Técnico da Clínica Villa Cervantes – Saúde Mental Assistida (Itapira-SP). Autor de “Infância do Futuro” (2005).

Imagem: Hercules on the Pyre – Guido Reni (1617)   

As opiniões dos textos publicados no Blog da SBPSP são de responsabilidade exclusiva dos autores.     



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