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Vergonha: entre o afeto e a moralidade

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O desconforto gerado pelo sentimento de vergonha não é algo que, de imediato, podemos explicar. Ninguém gosta de sentir vergonha e, embora seja um dos afetos mais comuns e universais, não é fácil descrever o que é e exatamente de onde vem esse sentimento. No artigo abaixo, a psicanalista e membro da SBPSP, Marina K. Bilenky, desvela de forma concisa e ao mesmo tempo profunda o que é, qual é a origem e qual a importância desse afeto.

Vergonha

Por Marina K. Bilenky*

A vergonha é um sentimento doloroso. De origem narcísica, é ferida difícil de cicatrizar, permanece indelével na memória e está relacionada muitas vezes a situações de impotência. Sentimento social, surge quando o olhar do outro vê o que não deveria ser visto. É o rubor inoportuno, a umidade da pele, a tremedeira, o gaguejar, o branco. Revelação de uma falha sem reparação. A imagem manchada, a desqualificação. A vontade de sumir da face da terra. É a exposição de uma fraqueza, a perda das aparências e da dignidade – o mundo interior desmascarado aos olhos do outro.

A vergonha confunde-se com a culpa, mas são diferentes. Ambos são afetos relacionados à moralidade e servem como reguladores sociais do comportamento humano. Porém, a culpa é resultado de um mal causado ao outro, é dirigida a quem foi lesado, imaginaria ou verdadeiramente. Na vergonha, a imagem da própria pessoa é atingida. Na culpa, há reparação; na vergonha, não há como consertar a imagem manchada.

A vergonha aponta para uma falha na imagem do sujeito, como um defeito de fabricação. Já a culpa aponta para um ato humano ditado pela vontade e sempre relacionado a uma transgressão. A vergonha, mesmo quando aparece como resultado da exposição de uma transgressão, tem um caráter mais global — não é o ato em si que é julgado e, sim, a pessoa inteira.

A vergonha é um sentimento social. Surge diante do olhar do outro. Entra em cena quando o outro passa a existir conscientemente para a criança e, com ele, seu olhar. O olhar é parte fundamental do processo de constituição da subjetividade e a vergonha, que surge na tomada de consciência de si, é fundamental como sentimento que regula a relação do sujeito com o mundo que o cerca. Porém, um olhar muito crítico ou um olhar que não reconhece os desejos e necessidades da criança como legítimos e, portanto, merecedores de consideração e cuidados pode inibir ou prejudicar o desenvolvimento da criança.

É frequente o paciente evitar temas que lhe causem vergonha na análise. Mas também podemos assistir àqueles momentos em que ele se esforça para superá-la diante de alguém que se tornará testemunha daquilo que tão laboriosamente luta para esconder. Ao explorar esse sentimento, o sujeito amplia as possibilidades de lidar com suas questões, o que pode resultar em um aumento de suas relações pessoais dentro de seu meio social. Percebemos quanto o indivíduo se fecha e se protege por temer o julgamento e olhares críticos dos outros.

Aspectos importantes do mundo do paciente permanecem protegidos contra esse tipo de invasão e, consequentemente, tornam-se pouco acessíveis a ele próprio. Essa blindagem funciona como defesa contra qualquer aproximação que ameace a imagem desqualificada que o sujeito tem de si.

A vergonha, ao contrário da culpa, não pode ser recalcada nem esquecida. A saída é o encobrimento. O envergonhado procura esconder aquilo que provoca a vergonha, seja uma característica física ou de personalidade, seja uma situação que exponha, para ele, uma falha sua. A reação à exposição vem carregada de angústia e dá lugar a inibições, fechamento sobre si mesmo, impossibilidade de desenvolvimento.

O sofrimento dos indivíduos que têm dificuldade com a exposição se refere ao sentimento de que existe uma grande distância entre o que ele é e o que pensa que deveria ser para poder fazer parte do mundo ao qual deseja pertencer.

O envergonhado sente que os olhares o trespassam e que todos podem enxergar o que lhe vai por dentro. É vivência angustiante, pois o sujeito quer ser visto, mas teme ser visto demais. Assim, ele procura se tornar invisível e esconder qualquer coisa que possa ser considerada como imperfeição. Na impossibilidade de se arriscar, errar e aprender, a pessoa se paralisa.

A vergonha também pode surgir de repente, quando diante de alguma situação aparece uma fratura entre a imagem que se tem de si e a imagem ideal. O sujeito se vê em uma situação onde imagina que todos verão essa quebra. Devido a seu caráter cruel e castrador, a vergonha atua de modo a levá-lo a tentativas de inibir qualquer atividade que possa revelar essa falha.

A vergonha é sentimento multifacetado. Aparece com diferentes intensidades, podendo manifestar-se como simples pudor até atingir um grau de sofrimento intenso. Pode ser circunstancial ou existencial. A reação à vergonha, a depender de sua intensidade, pode causar desde bloqueios pontuais até impossibilidades de interação social.

Cabe a nós, psicanalistas, incluirmos em nosso trabalho uma escuta mais atenta para o sentimento de vergonha. Isto pode funcionar como porta de entrada para questões de ordem narcísica, iluminando aspectos do funcionamento psíquico do paciente que, muitas vezes, ficam protegidos devido a uma defesa mais ou menos intensa que leva ao isolamento e à inibição.

Mas não podemos esquecer que a vergonha é sentimento básico do ser humano, regulador dos vínculos sociais e mantenedor da dignidade.

*Marina Kon Bilenky é psicanalista e membro associado da SBPSP.



Comentários

5 replies on “Vergonha: entre o afeto e a moralidade”

Suely Gevertz disse:

Adorei Marina. Parabéns!!!!!

Renata Udler Cromberg disse:

Belo artigo, Marina, muito bem escrito!

Danielle Bevilaqua disse:

Muito bom o texto! Claro e preciso!

Ótimo. Penso em publicar no meu blg

CELITA ARAUJO DA SILVA disse:

Gostei muito do texto que acabei de ler.
Obrigada…

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