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Uma autobiografia kleiniana

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*Alexandre Socha

O ímpeto em narrar a própria história e dar a ela algum sentido é uma das mais fortes necessidades da natureza humana. Ela assume inúmeras formas, das pinturas rupestres ao diário íntimo, passando pela criação artística e pela função dos testemunhos. Existem aqueles que escrevem suas lembranças para torná-las mais vívidas, resgatá-las da penumbra do esquecimento e da poeira do tempo. Já outros o fazem justamente para conseguir esquecer, fiando-se na permanência do papel e sua concretude externa para delas poder se libertar.

Pouco sabemos sobre o que pode ter levado Melanie Klein, às vésperas de completar 78 anos, a debruçar-se sobre suas memórias em um texto autobiográfico. Sabemos, todavia, tratar-se de um de seus últimos registros, contemporâneo, portanto, a “Sobre o sentimento de solidão”, “Algumas reflexões sobre a Oréstia” e outros trabalhos incompletos. Klein vinha redigindo breves notas sobre sua vida e as reuniu em um texto único, de trinta páginas, no final de 1959, meses antes de seu falecimento.

Em uma espécie de “retorno às origens”, recupera nessas notas o ambiente de sua própria infância e os inícios de sua trajetória psicanalítica. Cenas prosaicas do cotidiano doméstico, da vida escolar, de sua relação com o judaísmo e linhagens familiares, desfilam como paisagens na janela de um trem – ou, por que não, como associações livres feitas no divã da folha em branco. Delas emerge um passado idílico e nostálgico, exigindo do leitor um constante esforço para contextualizar tais reminiscências ao momento em que foram escritas. Pois, assim como ocorre no divã psicanalítico, as lembranças – sejam elas encobridoras ou não – trazem sempre a marca do momento atual. Como assegura o velho ditado, “não vemos as coisas como são, vemos as coisas como somos”.

Diante do valor documental das notas autobiográficas, disponibilizadas recentemente ao grande público pelo Melanie Klein Trust, acaba de ser publicado o livro “Melanie Klein: Autobiografia comentada” (Blucher)[1]. Além da tradução inédita do texto para o português, cuidadosamente realizada por Elsa Vera Kunze Post Susemihl, a edição conta com quatro comentários feitos por colegas que há décadas se dedicam ao estudo de Klein. R. D. Hinshelwood (Londres), Liana Pinto Chaves (São Paulo), Claudia Frank (Stuttgart) e Izelinda Garcia de Barros (São Paulo) amplificam as ressonâncias da Autobiografia e oferecem novos substratos à sua leitura. Foi também incluído nessa edição o relato de James Gammill sobre sua experiência de supervisão com Melanie Klein, ocorrida, coincidentemente, no mesmo período em que se deu a reunião de suas notas autobiográficas.

Entre a vida e a obra

Não foram poucos os analistas que se dedicaram a escrever suas memórias. Guardariam elas algo de suas concepções teóricas e clínicas? Seria o conteúdo autobiográfico semelhante ao biográfico, frequentemente utilizado pelos pesquisadores para iluminar pontos obscuros de uma obra e revelar os contextos de sua construção?

Toda escrita psicanalítica parece carregar, ainda que involuntariamente, alguma marca autobiográfica. Afinal, sua origem remete sempre a uma relação íntima do analista, tanto com seu paciente, instituição ou fenômeno cultural abordado, quanto consigo próprio e com sua experiência vivida na ocasião. Essa “autobiografia” implícita, a que perpassa o conjunto de uma obra, pode, por vezes, não coincidir plenamente com uma autobiografia stricto sensu do mesmo autor, correndo ambas silenciosamente em paralelo. Um olhar mais detido sobre elas, no entanto, permite encontramos complementariedades em aparentes contradições.

O ensaio memorialístico “Um estudo Autobiográfico” (1925), que Sigmund Freud escreve sob encomenda para uma editora alemã, é um caso emblemático e um contraponto interessante ao texto de Klein. Logo aquele que em tantas ocasiões expôs, aberta ou disfarçadamente, elementos de sua vida privada, sonhos, medos e ambições, apresenta-se em suas memórias “oficiais” claramente reservado e cauteloso. Dez anos depois, no pós-escrito de 1935, Freud explicita seu posicionamento: “em alguns de meus escritos (…) fui mais franco e aberto do que costumam ser as pessoas que narram sua vida para os contemporâneos e os pósteros. Não me foi demonstrada muita gratidão por isso; a experiência me leva a desaconselhar que outros o façam.”

Suas reminiscências nesse texto são equivalentes à própria história da psicanálise e de sua invenção. São, em particular, a história pormenorizada das oposições e difamações enfrentadas pela psicanálise, os custos pessoais para o seu desenvolvimento, o alto preço que pagou por ele e as defesas que se tornaram necessárias erigir. Embora apresente-se como relato objetivo de um percurso científico, a narrativa freudiana transpira de modo sutil a reiteração de uma mitologia pessoal: Freud é aquele que sobreviveu aos ataques e provações para que sua verdade prevalecesse. Rompeu a repressão da era vitoriana com uma revolução que, de fato, até hoje não foi totalmente assimilada: a da sexualidade infantil e seus efeitos na vida psíquica. Tal qual o mito do herói, seu autor sai das inúmeras dificuldades transformado, podendo nos contar então sobre as batalhas vencidas e as marcas que lhe deixaram.

Em que pese as circunstâncias bastante distintas em que foi escrita, a narrativa kleiniana não apresenta, em termos manifestos, praticamente nada sobre suas conquistas, adversidades ou mesmo sobre o desenvolvimento do seu pensamento. Antes, há passagens extensas onde pairam uma visão do infantil, o seu próprio, compondo uma descrição conciliatória de objetos que buscam reestabelecer uma relação amorosa entre si. Mesmo sendo um autorretrato bastante comedido, seria difícil não correlacionar tais perspectivas com aquilo que a autora produziu ao longo de quatro décadas como analista de crianças e adultos.

Ao lado de Helene Deutsch e Karen Horney, Melanie Klein propôs uma visão renovada do feminino dentro da teoria psicanalítica e explorou suas múltiplas latitudes na prática clínica. Suas contribuições, contudo, foram mais além do que as de suas contemporâneas e operaram um verdadeiro deslocamento no eixo gravitacional da metapsicologia freudiana, voltando-se das interdições da figura paterna para a questão da maternidade e das particularidades da relação inicial que se estabelece entre o bebê e sua mãe. Nesse caminho, Klein inaugurou uma perspectiva original dentro do campo psicanalítico, cujo desdobramento ultrapassou as fronteiras do kleinismo e se ramificou por diferentes vias, ainda hoje em desenvolvimento.

Do mesmo modo como em Freud e outros autores, há elementos biográficos sabidos, mais ou menos reconhecíveis, em vários dos principais artigos que Klein publicou em vida. Somada a uma notável perspicácia e capacidade de observação clínica, soube como poucos transformar experiências dolorosas (lutos, ambivalências, perseguições, perdas, rivalidades, etc.) em construções teóricas sofisticadas sobre o funcionamento mental. À percepção de que alguns de seus trabalhos brotaram de um sofrimento pessoal e de sua elaboração, vem somar-se agora este “novo” texto que acaba de completar 60 anos: sua Autobiografia.

*Alexandre Socha é psicanalista, Membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP).

[1] O lançamento do livro será realizado no dia 19 de outubro, às 11 horas, na SBPSP, em reunião aberta e entrada franca.



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