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Sofrimento na adolescência: reconhecendo sinais de risco

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Denise de Sousa Feliciano

Recentemente fomos impactados pela notícia de que uma escola de segundo grau em Suzano, um município próximo à capital paulista, havia sido palco de uma inimaginável tragédia: dois ex-alunos adolescentes entraram tranquilamente pelo portão e vitimaram colegas e professores a tiros e machadadas antes de cometerem suicídio. Comoção nacional e a pergunta latejante sobre o que teria levado dois jovens sem histórico de delinquência a cometerem um crime de tal crueldade.

Investigações mostraram indícios de que o crime havia sido premeditado e inspirado em outros similares acontecidos nos Estados Unidos, com destaque para o de Columbine, ocorrido há 20 anos, muito similar ao que se passou em Suzano e também em 2011 em uma escola no bairro de Realengo-RJ.

Tanto a polícia quanto o público buscam compreender as motivações que estão na base desses crimes como uma forma de dar sentido para talvez amenizar o terror sem nome que esses episódios suscitam. Entretanto as explicações e motivos encontrados na maioria das vezes são insuficientes para a intensidade da ação.

O que está em questão é exatamente a falta de sentido, o vazio e outras nuances de uma vida mental de extrema pobreza e sofrimento que escapa à compreensão de uma lógica consciente.

Lionel Shriver reproduziu no livro Precisamos falar sobre Kevin, que em 2011 foi produzido para o cinema na direção de Lynne Ramsay, uma ficção que tenta reconstruir a genealogia de um assassino similar a tantas dessas tragédias ocorridas em escolas americanas. Kevin é tanto o bebê que não se acalma, a criança que não olha nem se vincula com a mãe, quanto o adolescente que aos 15 anos vitima seus colegas, professores, pai e irmã. Resta uma mãe amargurada e sem respostas.

O ódio que esses crimes despertam talvez seja a única forma encontrada inconscientemente por esses jovens de nos comunicar seu próprio ódio por si mesmos e pelo outro. Um sentimento muitas vezes sem contornos para o qual eles constroem uma história intrapsíquica ficcional, mas que se torna sua realidade. É a realidade psíquica que está na base de quem de fato somos.

Dostoiévski em Crime e Castigo, narrativa primorosa, nos oferece a incursão no conflito de uma mente perturbada pela aflição e o desamparo, mediados pela culpa. Nele, o ex-estudante Ródion Ramanovich Raskolnikov assassina uma velha senhora e sua irmã com machadadas a sangue frio, ancorado pelo delírio de representar uma atitude grandiosa para a humanidade. A personagem vive uma vida de miséria. Mas a falta de recursos econômicos é apenas a concretização de sua miséria psíquica que, paradoxalmente parece encontrar sentido no tormento moral que o invade após o crime.

Em termos psíquicos, o que está em pauta é a percepção do mundo e das relações atravessadas por uma mente que não tem instrumentos para processar as dores humanas, imposta a todos nós. Frustrações, decepções ou perdas são congeladas num universo imaginário paralelo no qual o sofrimento é distorcido e representado como resultado de um mundo cruel e perseguidor do qual precisam se defender.

E quais terão sido os delírios dos jovens protagonistas das nossas tragédias? Nunca saberemos. Eles mesmos se incumbiram de suas próprias penas e ao mesmo tempo da libertação de uma provável vida de dor sem fim.

Mais do que buscar o motivo disparador para um crime hediondo entre adolescentes, é reconhecer sinais que possam indicar riscos e ajudá-los. Reconhecer ao nosso lado uma miséria semelhante torna-se cada vez mais urgente. E para nos oferecermos para enxergá-los e resgatá-los da solidão de uma existência vazia é preciso estar disposto a observar e agir. Para isso, é preciso estar perto para ver os sinais de alerta nas sutilezas da convivência e, sobretudo, enfrentar a proximidade com estados mentais sombrios.

Apesar das aparências, o adolescente ainda não se consolidou num funcionamento adulto. É uma identidade em construção. Muitas vezes os pais, acreditando que seus filhos já são capazes de cuidar de si, os deixam à própria sorte, liberando de uma hora para outra tudo o que até então não lhes era permitido: álcool, noitadas sem fim, viagens sem notícias, etc. Entretanto, eles não estão preparados para não terem a tutela dos pais. Ainda não têm estofo para a responsabilidade de cuidarem de si.  Ante a sensação de onipotência que se ergue para compensar a impotência de suas fragilidades colocam-se à mercê do perigo, para si e o outro.

A outra face desse desamparo são os, cada vez mais frequentes suicídios entre adolescentes. A pobreza individual pode se camuflar quer seja no silêncio da reclusão em telas de computador ou smartphones, ou na falsa aparência do jovem descolado e poderoso, amado por todos e sempre feliz. O excesso, seja de tristeza ou alegria, de comer demais ou não comer, de estudar demais ou só dormir, é um dos indícios importantes de sofrimento.

Os jovens de Suzano costumavam passar horas em lan house, perdidos num mundo incógnito de uma internet obscura chamada deep web, na qual “conversavam” com interlocutores anônimos. Sem rosto. Sem nome. Sem voz. Sem existência como possivelmente se sentiam.

Frequentemente após as tragédias, as testemunhas de suas vidas cotidianas reconhecem os tais sinais que sempre estiveram lá, mas não puderam ser vistos. É o que tenta mostrar o filme de Kevin nos incômodos que acompanharam sua existência desde o berço, mas que seus pais não puderam levar a sério para cuidar.

A adolescência traz de volta e reabre muitas dores e vivências de sofrimentos vividos na infância, muitos deles na mais tenra idade. Nessas etapas de vida, as experiências e seus afetos não podem nem mesmo ser nomeadas pela falta de linguagem e permanecem represadas num registro primitivo da mente. É necessário um trabalho psíquico que seja capaz de acessar essas esferas mentais para uma nova reformulação e processos mentais que permitam que haja elaboração e consequente fortalecimento do eu.

Enfim sempre há esperança quando é possível ver e socorrer.

Denise de Sousa Feliciano é psicanalista, Membro Associado na SBPSP, filiada à International Psychoanalytic Association. Mestre e doutora pelo IPUSP, docente no Departamento de Psicanálise com Crianças do Sedes. Membro da Sociedade Brasileira de Pediatria e Sociedade de Pediatria de São Paulo. 
denisefeliciano@uol.com.br



Comentários

One reply on “Sofrimento na adolescência: reconhecendo sinais de risco”

Fernanda Codorniz disse:

Denise, gostei bastante do seu texto. Texto verdadeiro, nos apresentando de maneira clara sobre a importância de acompanharmos os jovens nesse período da adolescência, atentos aos sinais de isolamento e sofrimento psíquico. Muitas vezes, pelas mazelas da sociedade e da família, os laços são afrouxados entre pais e filhos e esse deixar ir, acontece precocemente, numa época que o apoio é fundamental.

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