Encontre psicanalistas membros e membros filiados


Schumann – sinfonia nº 2

Home      Blog      artigos      Schumann – sinfonia nº 2

Por Leopold Nosek

As biografias de Robert Schumann costumam oferecer um panorama romântico em que aspectos da subjetividade do compositor se mesclam com características de sua produção. Nascido em 1810, na Saxônia, temos em Schumann um gênio problemático que cresceu num lar altamente disruptivo. O pai, livreiro e romancista, tradutor de Walter Scott e Byron, tinha uma personalidade conturbada; a mãe é descrita como uma mulher violentamente apaixonada. Seus estudos iniciais de música se direcionaram para o piano. O interesse por literatura, latim e grego se desenvolveu cedo também, e datam de precoce juventude seus primeiros escritos. Aos 16 anos perde o pai, no mesmo mês em que sua irmã se suicida. Para fazer jus à herança, conforme as estipulações paternas, é obrigado a se matricular em direito na Universidade de Lepzig.

Por essa época, estuda piano com Johann Friedrich Wieck, cuja filha Clara, então com 9 anos, viria a ser sua esposa. Em 1830, aos 20 anos, abandona o direito. Já sabe que nunca se tornará um pianista virtuosístico. Uma das explicações seriam os problemas com um dedo da mão direita, consequência talvez de envenenamento por mercúrio, quando do tratamento da sífilis que adquiriu precocemente. Sífilis que pode estar no centro de seus futuros padecimentos psíquicos.

A década de 1830 será marcada por fortes desavenças com Wieck, motivadas tanto por questões musicais como pela ferrenha oposição deste ao relacionamento de Schumann com Clara. Desenvolve na época um trabalho intenso como crítico na Neue Zeitschrift fur Music, periódico do qual foi cofundador, em 1834, e no qual divulga suas ideias acerca da música. Nessa década, escreve a maioria das obras que o estabelecem como autor obrigatório na literatura para piano, tais como os Estudos sinfônicos, asCenas infantis e a Kreisleriana.

Em 1841 Robert se casa com Clara — ela, sim, aclamada como virtuose do piano —, depois de um tempestuoso processo legal contra seu professor e pai de Clara. Tomado de uma criatividade febril, compõe no ano dessa disputa cerca de 140 canções que são obras-primas do gênero. No ano seguinte, em estado de celebração, começa a escrever obras sinfônicas. São dessa época as Sinfonias no. 1 e no. 4, além da Fantasia em lá menor para orquestra e piano. Em seguida, dedica-se à música de câmara. Em 1844 o casal se transfere para Dresden, onde Robert terá uma de suas crises mais severas e criará, em poucos meses, a Sinfonia no. 2 em dó maior.

Dez anos depois, no inverno de 1854, a insanidade de Schumann se manifestará dramaticamente, culminando um longo histórico de crises de hipomania, melancolia e alucinações. Ouve vozes angélicas que logo se tornam ruídos infernais de tigres e hienas. Tenta o suicídio no Reno, e, resgatado, passa dois anos em isolamento num sanatório, proibido de ver Clara até uns poucos dias antes de morrer.

Temos aí o habitual terreno romântico onde se colore uma personalidade artística com altas doses de subjetividade e se define o gênio que surgirá da aguda introspecção, do sofrimento, do desespero. Faz parte desse hábito retratar o artista como o herói solitário cuja insatisfação se contrapõe a um mundo hostil.

Alguns biógrafos de Schumann dirão que, nesse momento, todo o seu ser respira música e que esta se mescla entranhadamente com fantasias, sonhos e delírios. Lida com suas ideias musicais de forma militante, criando, por exemplo, a “Liga de Davi”, grupo imaginário que se dispunha a combater os filisteus da música da época. Em mais um canônico expediente romântico, essas figuras se movem sob a tutela de duas personas de Schumann: o extrovertido e impetuoso Florestan e o pálido e tímido Eusebius. São personagens que também se reapresentam musicalmente, nomeando duas peças do Carnaval – Pequenas cenas sobre quatro notas. A vida é construída e encontra expressão programática na obra musical, que adquire então uma figuração peculiar.

Assim, na Sinfonia no. 2, de 1845-46, é comum que se identifique uma luta titânica contra a insanidade nos dois primeiros movimentos, passando a um profundo estado melancólico no terceiro movimento e terminando com um quarto movimento que celebra a vitória sobre o sofrimento. Thomas Mann não resistiu a esse apelo quando, no Dr. Fausto, associou o adoecimento do compositor Adrian Leverkühn — o protagonista dessa espécie de biografia musical fictícia — à genialidade de sua produção. Criara-se o costume de ver a paralisia geral progressiva, loucura sifilítica muito comum até o advento da penincilina, em 1942, como um evento dionisíaco, próprio a engendrar a originalidade. Mann se baseou nos diários de Nietzsche, que, como se sabe, viveu seus últimos anos acometido pelos tormentos dessa manifestação da doença. À parte incitar suicídios, o Treponema pallidumda sífilis e o bacilo de Koch da tuberculose sempre agiram poderosamente sobre a imaginação romântica. Esses organismos invisíveis seriam os responsáveis por trazer Mefistófeles, profeta da criação e da consciência, para o centro da cena.

Mas acompanhemos agora T. S. Eliot em seu ensaio “A música da poesia”, que integra o volume De poesia e poetas: “[…] a linguagem do poeta precisa estar de tal modo relacionada à linguagem de sua época que o ouvinte ou leitor possa dizer: assim é que eu falaria se pudesse falar em verso”. Adiante, reafirma: “A música da poesia deve ser, portanto, a música latente na fala comum de sua época”. Por esse caminho, podemos pensar que a música deve conter a poesia do presente, ser um modo de dar expressividade ao seu tempo.

Não pretenderia jamais fazer uma impossível paráfrase da Sinfonia no. 2 de Schumann neste texto que quer apenas fazer alguma companhia enquanto se espera a música. Mas é possível aproveitar este breve momento para construir um sonho — não será o que todos nós fazemos quando nos deixamos impregnar de música (em vez de nos entregarmos à preguiça de um simplório devaneio embalado em sonoridades)? Tampouco pretenderia fazer uma dissecção anatômica, escudado no que Eliot afirma com baixos teores líricos: “A anatomia não pode nos ensinar o que é preciso para uma galinha botar ovos”.

Ouvimos os acordes iniciais da sinfonia, os metais ecoam, começa o primeiro movimento. A lenta evolução nos faz escutar o espectro que assombrava Schumann, Brahms e tantos outros: Beethoven! Agora, entretanto, estamos em outro registro de conflito e representação. Continua a existir como que um apelo à grandeza do humano, mas desta vez a crença não se faz acompanhar da força de uma ideia que acaba de vir ao mundo. A decepção, por outro lado, não será acompanhada da indignação que fez Beethoven rasgar a dedicatória da Eroica a Napoleão Bonaparte, que abandonara a revolução e se coroara imperador. Agora quem se coroará será Luís Bonaparte, seu sobrinho. Serão tempos de um outro 18 Brumário, não mais a tragédia que arrebata, mas a farsa que despedaça a alma. Conduzidas pelas cordas, loucas e sombrias sonoridades chegam rapidamente e se sobrepõem aos metais.

A subjetividade de Schumann se corresponde de alguma forma com o drama de uma época. Uma enorme aventura fora anunciada: a secularização do mundo — Deus exilado, ou quando muito habitando o foro íntimo, a Razão seguindo firme em suas conquistas, a Ciência como nova avalizadora da verdade, a História caminhando para sua realização triunfal. A esperança, reapresentada, recuperaria o tempo perdido e as promessas acumuladas se cumpririam. Rasgada a dedicatória a Bonaparte, contudo, Beethoven se dirige a territórios introspectivos que, cada vez mais remotos, no século seguinte seriam objeto da maior de todas as aventuras: Ulisses fará seu périplo no espaço de horas, nos domínios do mundo interno.

Outro é o tempo de Schumann. Com a aproximação de Luís Bonaparte, o artista se recolhe, se retrai diante de promessas heróicas que não se cumprirão. Seu isolamento terá como corolorário um novo sentimento, uma nostalgia de tempos que supostamente existiram — nós nos tornamos agudamente melancólicos. Uma longa série de projetos se reapresenta, e cada um deles é sucessivamente “esperado”, “ansiado” no passado. Cada época faz isto: cria novos estados de alma. Hoje somos contemplados com o que poderíamos chamar de estado “antideprimido”. Quem o conheceu no passado?

O segundo movimento, ao contrário do andamento lento habitual, nos traz um scherzo em que Schumann, como observam os comentadores, evoca Bach, retomando os estudos que escrevera antes desta sinfonia e que teriam tido um papel relevante nos meses de 1845, quando se recuperava da grande crise. Esse movimento, que tem aspectos virtuosísticos importantes, se encerra em triunfo.

Chegamos ao adágio em dó menor, expressão talvez da essência do romantismo. Em clima de beleza sublime, o dilaceramento da alma e a melancolia atingem uma representação raramente alcançada. Como as gerações que nos precederam, somos profundamente afetados por ele. Soa como se tivéssemos sido construídos sobre esses alicerces e fundações, que não são o passado: são a raiz do presente, que se assenta sobre elas. Continuamos a esperar, e nossas decepções atingem outras intensidades. Depois da criação e da revelação, ainda e sempre nos faltará a redenção. Somos feitos desse material, do sonho religioso que constrói nosso mundo “quase” desencantado, e assim mergulhamos no universo desse comovente terceiro movimento. Somos nostálgicos do mundo que nós mesmos nos prometemos, no qual encontraríamos o Alle Menschen werden Brüder anunciado pelaNona de Beethoven, um mundo de fraternidade. Somos nostálgicos de todos os amores que encontram sua plena realização.

O quarto movimento, que retoma trechos do primeiro e do terceiro, geralmente é comentado como expressão da recuperação mental de Schumann. Talvez seja sintomático de que a esperança e o apelo do triunfo não foram abandonados. É a recordação do que ainda não se realizou.
Somos reféns da invenção grandiosa que foi a ideia de redenção e também da decepção inescapável que esta engendra. A Sinfonia no. 2 nos lê hoje, nos ajuda a dar forma ao presente — e essa atribuição de forma se chama saúde. Precisamos dessa forma porque ela traz em si a possibilidade de que o pensamento se mova. Essa é a forma dos sonhos, que são a matéria de que é feita a arte. Eliot nos diz: “O poeta está às voltas com as fronteiras da consciência, além das quais as palavras definham, embora os significados continuem a existir”. Inevitavelmente, deixaremos esta sala de concerto com a sensação de que demos um passo a mais em nossa humanidade.

*Este artigo foi publicado na Revista da OSESP
** Leopold Nosek é psiquiatra, psicanalista, membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP); ex-presidente da SBPSP e ex-presidente da Federação Psicanalítica da América Latina (FEPAL).



Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *