Encontre psicanalistas membros e membros filiados


Quebrando a costela de Adão

Home      Blog      cinema      Quebrando a costela de Adão

* Miriam Chnaiderman

 1. Linn da quebrada, a bixa travesty

Eu quebrei a costela de Adão     

Muito prazer, sou a nova Eva

Filha das trevas, obra das trevas

Não comi do fruto do que é bom e do que é mal

Mas dechavei suas folhas e fumei sua erva.”

Essa é a letra de uma canção, entre muitas outras, que a maravilhosa e provocativa Linn da Quebrada nos apresenta no portentoso documentário BixaTravesty, dirigido por Cláudia Priscila e Kiko Goifman. Aliás, é preciso acentuar, o roteiro é assinado pelos dois diretores e por Linn da Quebrada. É sempre o olhar de Linn que está presente e as escolhas são dos três.

Não é docemente que a mulher nasce de Adão. É irrompendo, esfacelando, quebrando. Já um tremendo esforço de visibilidade e de existência. A mulher é obra das trevas. Do demônio?

O devir-mulher se explicita em sua violência desde o início do filme, quando em um programa de rádio que apresenta junto com Jup do Bairro, sua querida Bebete, Linn afirma:

“Nós vamos aprender as suas técnicas e nós vamos melhorá-las, nós vamos aprimorá-las e vamos usar entre nós. Vamos aprender a lutar, vamos pegar em armas, vamos pegar nos nossos corpos como armas e aí o jogo vai virar pra vocês. Eu não queria estar na pele de vocês”.É um discurso raivoso de mulher que luta por seus direitos. É um discurso feminista acentuado.

No programa, Linn se apresenta como Linn do Bairro e apresenta Jup como Jup da Quebrada. “Qual é bixa? Qual é veada?” Afirma Linn:“Porque antes eu era um traveco, agora sou mulher, sim…”.

Ou então: “Eu, quando alguém me aponta o dedo e fica gritando que sou veado, alguém faz alguma piada, eu penso: gente, será que eu tava tentando disfarçar? Será que eles acham que precisam me lembrar disso?(..) Eles acham que nós deveríamos curvar nossas cabeças e então atender essas expectativas. Então, se você quer ser mulher, tenha peito. Se você quer ser mulher, seja magra. Então, se você quer ser mulher, então você tem no mínimo que atender às expectativas do que é ser mulher…Não necessariamente… Pode até ser se você quiser, se eu quiser…Às vezes, eu fico com um pouco de vontade… Vou confessar que, às vezes, eu quero mas aí eu nunca tenho certeza do quanto eu quero, se eu quero ter peito, se eu ter dois… se eu quero tirar o pelos…”.

Em outro momento, Linn brinca: “Eu não tenho lugar de fala porque eu tenho passabilidade trans mas na verdade eu sou uma mulher cis”. Depois, rindo, pede que essa sua brincadeira não vá ao ar…  É marota com o binarismo de gênero… Pode ser qualquer coisa…

Em quase uma defesa da indiscriminação ou do desmanchamento de qualquer lógica aristotélica, Linn é bixa travesty. A lógica identitária não é a de Linn! Em entrevista à revista Cult (Trói ,2017), Linn conta que leu e lê Foucault, Preciado, Butler. Define o queer, conceito de Judith Butler para definir o corpo bizarro, o corpo abjeto, como inominável, como aquilo que não pode ser fixo. Citando Linn na entrevista: “O queer é a dúvida, a incerteza, é uma atitude em relação ao próprio corpo, não identidade”.

Essas reflexões, despertadas pelo documentário, remetem ao meu texto, “É possível ser gender fucker?”(Chnaiderman, 2018), escrito em 2017 e publicado em 2018. Essa interrogação que dá nome ao texto é a fala de Dudu Bertholini ao final do documentário “De gravata e unha vermelha (2014)”, que dirigi.  Reproduzo aqui o início desse meu ensaio:

“Ao final do filme que dirigi “De gravata e unha vermelha” (CHNAIDERMAN, 2014), Dudu Bertholini, um dos personagens do documentário,  em lindas vestes e brincos vistosos,  declara: “Eu sou o que as pessoas classicamente chamam de um gender fucker… então, eu sou a pessoa que não quer o estereótipo do masculino, não quer o estereótipo do feminino… eu quero  muito mais é descobrir uma maneira única e minha de ser”.

A radicalidade dessa frase chama a atenção. Ser um gender fucker explode qualquer lógica identitária e questiona o binarismo de gênero. Ser um gender fucker é não estar nem aí para o gênero, não se adequar ao que o nosso mundo oferece como possibilidades para viver o desejo.

Esse final do documentário ocorre depois de oitenta e quatro minutos onde vamos assistindo aos mais diversos modos de viver a sexualidade – sem qualquer estereótipo, vão emergindo desejos homos, desejos trans, brincadeiras as mais esdrúxulas: trans-mulheres que menstruam, trans-homens que engravidam, Rogérias que continuam Astolfos, Neys que adoram ser homens mas não suportam se restringir a qualquer espaço que limite o desejo, gays que adoram ter pelos e adoram casamentos pomposos com vestidos de princesa…”(p. 10) ( aqui termina a citação do artigo meu que cito… será que não seria bom deixar isso mais claro? Fazendo uma margem mais acentuada a esquerda ou letra menos, não sei…)

Quando fui convidada para participar do Colóquio Internacional Psicanálise, Gêneros e Feminismos, esse texto foi a minha fala na mesa “Transgressões” (24 de outubro de 2018).  Ao final, depois de uma elaboração teórica que passava por Lacan,Pommier e NathalieZaltzmann,  eu concluía que “Somos todos gender fuckers”, pois todo corpo seria bizarro, na medida em que “ninguém vive bem com seu corpo”(NathalieZaltzman) e que o objeto do desejo é sempre fantasioso.

Em conversa com Patrícia Porchat, uma das organizadoras do evento juntamente com Nelson Silva, fui bastante criticada. O argumento era o quanto, nesse momento em que vivemos, é importante manter a questão do gênero como batalha política. Patrícia se referia à necessidade de um movimento feminista que denunciasse a violência e os cânones da submissão que vigoram no mundo contemporâneo.  Como se o conceito de gender fucker abalasse a luta feminista, ou a bandeira da defesa de gênero.

Em conversa pessoal, Patrícia me explicou que sua questão seria com a generalização do conceito de gender fucker. Transcrevo sua mensagem para mim: “A luta feminista, a violência de gênero, a opressão e a subordinação das mulheres fala de pessoas e de um lugar que não explode identidade e que, infelizmente, funciona na lógica do idêntico e do diferente do um”. O conceito de gender fucker inviabilizaria essa questão. Penso que não. Pois o gender fucker toma vários rostos e caminhos. É isso que Linn nos mostra.

Dudu Bertholini, autor da frase no filme, trabalhou com Fernanda Lima no programa da Globo “Amor e Sexo”, onde deram voz a vários trans e onde Fernanda como mulher e, por ser mulher sexuada, foi considerada louca. Viralizou nas redes sociais a fala de Fernanda Lima:

“Chamam de louca a mulher que desafia as regras e não se conforma. Chamam de louca a mulher cheia de erotismo, vida e tesão. Chamam de louca a mulher que resiste. Chamam de louca a mulher que diz sim e que diz não. Não importa o que façamos, nos chamam de loucas. Se levamos a fama, vamos sim deitar na cama, vamos sabotar as engrenagens deste sistema de opressão. Vamos sabotar as engrenagens desse sistema homofóbico, racista, patriarcal, machista e misógino. Vamos jogar na fogueira as camisas de força da submissão, da tirania e da repressão. Vamos libertar todas nós! E todos vocês! Nossa luta está apenas começando, preparem-se porque esta revolução não tem volta. Vamos sabotar tudo isso?”.

Parece que aceitar a possibilidade dos mil sexos, entre eles, o da mulher, é uma posição antes de mais nada, política.Chamou-me a atenção em Linn da Quebrada, que se define bixa travesty, o feminismo exacerbado. Um feminismo lutado em alguém que não fez a cirurgia de redesignação sexual e que não escolheu se hormonizar, vivendo muitas dúvidas em relação a isso. “Esse lugar que eu to, essa invenção, é o lugar que eu chamo de bixa travesty, que é travesty, é feminino, mas também tem o lugar de bixa, que não é uma mulher que eu sou, é esse lugar que é bixa travesty. E as gays, elas gostam de boy, de homens – não é um espaço que eles cultivam pelo feminino…”.

Linn é mulher e é bixa.  Esse lugar que é gay também e gosta de homens. Como homem ou como mulher?  Ou isso não importa? Gender fucker? De qualquer forma, é como bixa travesty que Linn vai delineando um feminismo radical, afirmando que os homens apontam o dedo para as mulheres: “…o dedo do homem que adora apontar prás coisas e dizer

Mulher – lixo – casa. Dar nome, né, adora dar nome, dar sentido a essas coisas. Então eu pensei – porque é que eu não posso fazer isso também. Eu fiz a minha música justamente como arma, pensando que o primeiro alvo era eu…”.

É como travesty que o lugar da mulher ganha um questionamento radical: “Antes era impensável se pensar no corpo da travesti sem que ela estivesse extremamente ligada ao padrão do travesti… Tanto que as manos estavam muito mais sujeitas ao lance do silicone industrial, se sujeitando ao lance do silicone industrial e a hormonização.  Eu acho que hoje a gente consegue pensar na travestilidade ou na feminilidade sem, por exemplo, ter que estar ligada à depilação. Sem ter que estar ligado a trejeitos extremamente femininos…

… eu fico querendo entender como seria meu corpo com um pouco mais de feminilidade…”.

Para Linn, o menosprezo pelo trans é o mesmo que pelo feminino. Como se no trans, o feminino se exacerbasse.  E não porque o trans acentua o que é do binarismo, mas porque ele confunde… E o feminino confunde.  Em entrevista à revista Cult, Linn afirma que no sistema, no cis-tema “…só valoriza os saberes heterossexuais… Foi cultuado um repúdio e aversão às pessoas trans, um menosprezo pelo feminino.” Linn conta que é na música que desconstrói seu desejo.

Assim, Rafael Cossi, no dossiê da Revista Cult “Femininsmos e femininos” ( Cossi, 2018) fala de Luce Irigaray: “Escrever mulher e escrever como mulher, autoafetar-se, lançando mão de um regime de diferença não previsto pela binaridade implícita à mobilidade da linguagem  –  uma diferença que não se sustente na oposição entre dois termos substancializados, um a submeter o outro, tal como o pensamento ocidental se orientaria, a se dar a ver em pares de opostos como natureza/cultura e céu/inferno, e que se expande à relação intrínseca ao dipolo homem/mulher .  Se só A e não A – a mulher como negativo do homem, sua exclusão constitutiva -, Irigaray elucubra outra lógica a ser acionada por uma escrita que deturpe os códigos linguísticos, as regras sintáticas e a gramática da cultura que silencia o feminino.” (p. 34)

É o que Linn quer fazer. Linn canta: Tô vendo de camarote o fim do seu reinado, rindo muito da sua cara… (…) quando tiver que ir embora não esqueça, deixa seu pau encima da mesa… Bixa travesty de um peito só, o cabelo arrastando no chão e no meio sangrando um coração”.

Marie Claire Booms, no ensaio “Da sedução entre os homens e as mulheres: umaabordagem lacaniana” (Booms, M. C. 1987),mostra como nossa cultura vem colocando a mulher fora da possibilidade do simbólico. Afirma: “… pois numa sociedade que se funda sobre a rejeição para fora do simbólico do feminino nãohá significante de mulher. Há apenas o significante fálico e sua função para significar a diferença, dividindo ahumanidade falante em metade masculina e metade feminina,segundo a maneira como cada sujeito seinscreveu em relação à castração que esta função designa.” (Booms, p. 92) A metade masculina tem o acesso ao simbólico bem garantida. Na outra metade, a nomeada como feminina, haveria um gozo que escaparia à castração, sendo então portadora de umsegredo sempre inviolado. Nessa metade, o acesso ao simbólico permanece problemático.

Marie Claire Booms, como feminista, mostra como essa estrutura se dá a partir do falo, sendo o feminino verdadeiramente rejeitado para a esfera do enigma, de um enigma detentor de um gozo ao qual os ditos “masculinos” não têm acesso. Enquanto bixa travesty Linn vive tudo isso radicalmente.

2. Armadilhas psicanalíticas

É tocante a cena onde Linn e sua mãe tomam banho juntas. Com doçura, uma ensaboa a outra. Essa cena acontece depois de Linn, Leniker (com quem mora) e mais uma trans conversarem na cozinha com a mãe de Linn, fazendo um estrogonofe.  Nessa conversa, surge o tema da religião. E Linn é radical. Há um momento em que Linn pega nos seios de Leniker e fala que tem mais carne do que a que está na panela, e que viveram momentos duros, de fome e de pegar pizza na lata de lixo. A mãe afirma que devem agradecer, pois Deus deve ter feito assim para que eles aprendam a valorizar o que têm. Linn ironiza, diz que esse é um jeito conformista de lidar com a realidade. Nessa cena tão caseira, há um momento em que a mãe, falando de Linn, fala do talento “dele”. Linn pergunta: “Dele quem?”.  A mãe embaraçada, tenta se corrigir. Linn afirma que vai tatuar um ELA na testa, para que a mãe nunca mais se confunda. E é o que faz ao final do filme.

A cena do banho é tocante. Linn ensaboa as dobras do corpo envelhecido de sua mãe. Conversam sobre o corpo, conversam sobre nada. Apenas se ensaboam. Linn massageia sua mãe, com imensa gratidão. Linn ensaboa a mãe que ensaboa Linn…Não é uma cena edípica. É uma cena de ternura, como se a dureza da história de Linn guerreira pudesse, naquele momento, viver uma cena de ternura e repouso. E, acarinha sua mãe, que é empregada doméstica e cuida de duas crianças brancas. A vida foi dura. Linn já foi Lino e já foi Lara. A construção daquilo que é se dá minuto a minuto.

Depois, no final do filme, Linn tatua na testa ELA. Para que sua mãe não se distraia e não esqueça de que não é mais um homem.  Porque dói quando sua mãe a trata como um menininho. Mas, o papo na banheira é sobre como lavar o “pintinho” de uma criança.

É uma cena infantil.  Que poderia levar qualquer psicanalista a falar em uma sexualidade não genitalizada, infantilizada. Diferentemente do “La Luna”, de L. Bertolucci, onde a realização edípica entre os personagens é o grande tema do filme.

Sérgio Rizzo(Rizzo, 2016), apresentando o lançamento do DVD de La Luna assim fala:“O cineasta italiano Bernardo Bertolucci conta que uma das imagens mais fortes guardadas por ele da primeira infância, talvez a mais antiga, é a de um passeio de carro. O bebê quedepois dirigiria ‘O Último Tango em Paris’ (1972) estava no colo da mãe, entre ela e o volante, de costas para a estrada. Lá em cima, a Lua. ‘Lembro que o jovem rosto de minha mãe se confundia com o velho rosto da Lua. Interpreto essa lembrança como um sonho’, diz Bertolucci no documentário incluído no material extra da edição especial em DVD de “La Luna” (1979). A cena é recriada no início do filme, com uma bicicleta no lugar do carro (São Paulo, domingo, 19 de março de 2006). Rizzo nos lembra como a mãe lambe o mel que escorre pelo corpo do filho ainda um bebê. Depois, o choro do bebê vendo o prazer da mãe dançando com “outro”.  É diferente do que acontece com Linn.

Linn pergunta desafiadoramente à mãe se ela sente “tesão” por alguém. A mãe demora a entender. Diante da insistência de Linn, responde que sentiu pelo pai de Linn. Linn abraça a mãe rindo e esse abraço dá início à cena do banho.  É como se Linn se indiscriminasse da mãe como um bebezinho. A entrega de Linn e da mãe é de uma ternura tocante. Mas, ninguém precisa satisfazer ninguém, não há qualquer “fissura enlouquecida”. Diferentemente da mãe do La Luna que, segundo Sérgio Rizzo, “chega a satisfazer sexualmente o filho adolescente para aplacar a dor do garoto que busca mais e mais cocaína”.

Mas, ao final do filme, cumprindo a ameaça que fizera à mãe na conversa de cozinha, quando ela se refere à filha como “ele”, Linn tatua ELA na testa.  Esse ELA na testa, mais do que um sinal de ligação materna, é também um tapa na cara do mundo que quer “mulheres sem pinto”e “sem pelo”. Seria bastante fácil falar de uma ligação com a mãe levando à uma identificação primária, a uma bolha da primeira infância onde os corpos de indiscriminariam.

Ou ligar a transexualidade a uma sexualidade infantilizada não genital, que se evidenciaria tanto na cena do banho com a mãe como na cena em que Jup e Linn estão na sauna e falam dos corpos. Aliás, a relação de Linn com Jup acontece sempre ludicamente, dançarinamente. Jup é uma mulher trans, gorda e desajeitada.  As duas falam do esforço que fazem para não serem apenas engraçadas.  Reduzir a sexualidade trans ao pré-genital seria patologizar uma escolha que não obedece à anatomia. Seria fazer o que o DMS fez e faz, ou seja, considerar o transexualismo como doença a ser curada. Como fazem no Iran, onde matam homossexuais e operam transexuais para curá-los.

Em Linn e Jup, nos seus jogos, no humor, nas coreografias, o que vemos é uma sexualidade regida pelo Sexual, termo que Laplanche (Laplanche, 2015) conceitua como sendo aquilo que, para Freud,  é anterior “à diferença dos sexos, para não dizer à diferença de gêneros”(p. 157) . Citando Freud, Laplanche afirma que o Sexual poderia ser definido como “o que é condenado pelo adulto”. (p. 157).  E, a seguir, afirma Laplanche: “… creio que, mesmo nos dias de hoje, a sexualidade infantil propriamente dita, é o que mais repugna para a visão do adulto”(p. 158).

Há um momento do filme em que Linn encontra uma amiga querida,Núbia, que fotografou e filmou momentos íntimos. Vemos Linn ainda homem, vemos Linn urinando em uma praça como uma estátua barroca, vemos seus jogos com o pênis/batom. São jogos onde o corpo vai sendo conhecido através de lindo jogo erótico. Em uma transa no banho, Linn comenta de como viviam se agarrando, Linn e Núbia, e de como “tem coisas que não mudam”. É quando ficamos sabendo que Linn teve um câncer. É mais uma cena tocante: em um espelho de hospital, Linn vai puxando suas madeixas e o cabelo vai caindo, lentamente. Depois, na cama, com os lábios pintados de rosa pink, uma camisolinha azulão com pássaros que voam, Linn conta como aprendeu sobre o corpo a partir do câncer. Disruptora, de salto alto, Núbia filma cenas de autoerotismo no hospital. É com vida que se rebate a morte.

3. Descubram os corpos escondidos em cada um de nós

Em um dos programas de rádio, Jup conta a Linn que tinha resolvido vir de taxi, fazer algo diferente. E o taxista perguntou: “Prá onde o senhor vai?”. Esse é o diálogo de Jup com Linn:

Linn :Fui explicar prá o taxistaque nem toda mulher tem…

Jup: Barba, mas é o meu caso…

Linn: Nem toda mulher tem xuxu, mas eu tenho

Linn: Mas tem mulher que tem…

Jup: Pinto…

Linn: Olha que novidade!!!

Linn: Descubram novos corpos que se escondem entre vocês!

Jup: Vai vasculhando que vai dar.

Linn relaciona seu corpo com a produçãode saberes periféricos. Fala em “produção de saberes marginais”: “Tem essa questão geográfica , mas acho que eu penso meu próprio corpo como esse território geográfico, como esse território a ser explorado, como essas quebradas, ainda pensando o corpo como essa arqueologia, como esse processo de escavação, de descoberta de territórios que modificam as coisas e as transformam, que me fazem outra mesmo.E as possibilidades de encontros e desencontros vão se multiplicando ao infinito, pois “tem bixa que trava por medo de trava(…) e tem trava que trava-línguas e tem trava”.

Linn é de uma lucidez cortante: “Eu acho que eu sou a trava que tem medo do escuro. Eu acho que é disso que eu tenho medo. Tenho medo do escuro, tenho medo de ficar sozinho. Medo de não pertencer. Eu acho que pelo medo de não pertencer eu acabei inventando prá mim, prá que eu pertencesse pelo menos a mim. Já que não tem um lugar que me cabe então que inventasse esse espaço, um espaço que me coubesse. Mas que também é temporário. Não quer dizer que eu vou caber aqui prá sempre. Logo eu acho que eu vou precisar estar indo prá outros lugares”.

Aqui, Linn desconstrói qualquer leitura moralizante de sua sexualidade e jeito de estar no mundo. Afinal, todos temos que nos reinventar para caber naquilo que é o nosso desejo. Bixa Travesty deixa claro o não-lugar que constitui toda e qualquer sexualidade. Assim, Linn é mais feminista do que muitas mulheres, pois vive na pele a humilhação e o preconceito.  Sua luta política é pelo amor: “…eu acho que é político a gente ser amado, é um dever, é um dever meu ser feliz, é um dever meu ter dignidade, estar contente com a nossa vida, nós travestis, mulheres pretas e travestis, mulheres brancas e travetys, bixa sapatão, bixa travesty, é um dever nosso estar bem, ser feliz, ser amada. Prá isso que eu sinto que eu vivo mesmo, é prá ser feliz”.

Linn, como Laplanche, afirma o Sexual, como oposição ao sexo e ao gênero. Por isso incomoda tanto. Desvela o que o mundo adulto não pode ver. Desvela o que a sexualidade adulta recalcou.  Desvela o que, em“Três Ensaios sobre a sexualidade”, Freud mostrou de uma pulsão plástica e sem objeto pré-determinado. O nome que isso venha a ter – polimorficamente perverso, trans, bixa, etc, pouco importa.  Importa, sim, afirmar, com Linn, que amar é um ato político.

Referências Bibliográficas:

BOOMS, M. C. – “Da sedução entre homens e mulheres: uma abordagem lacaniana inHomem Mulher, abordagens sociais e psicanalíticas, org. Carmen Da Poian; R.J., Livraria Taurus Editora, 1987, pp 89-106.

CHNAIDERMAN, M – “É possível ser gender fucker” in Corpo: ficção, saver, verdade, vol.2, Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, n.50, vol. 2, janeiro/junho 2018, pp 9-22.

COSSI, Rafael Kalaf – “Lacan não sem o feminismo” in Revista Cult 238, ano 21, setembro 2018, pp 33-35.

LAPLANCHE, J. – “O gênero, o sexo e o Sexual” in Sexual A sexualidade ampliada no sentido freudiano –Porto Alegre, Fondation Jean Laplanche/ Dublinense2000 2006, pp 154-189.

RIZZO, S – Lançamento do dvd La Luna, São Paulo, “Folha Ilustrada“ in Folha de São Paulo, 19 de março de 2006

TRÓI, Marcelo de – “Linn da Quebrada: Ficou insustentável fingir que nós não existimos”, Revista Cult, 8 de agosto de 2017.

Miriam Chnaiderman é psicanalista e cineasta, ensaísta e escritora. Possui vários artigos publicados sobre psicanálise, cinema e teatro, bem como dois livros sobre a relação entre arte e psicanálise: “O hiato convexo: literatura e psicanálise” (Brasiliense, 1989) e “Ensaios de psicanálise e semiótica” (Escuta, 1989).



Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *