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Onde era Isso há de ser Eles

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Há algum tempo tenho tomado como objeto de pesquisa as incidências da vida digital sobre nossas formas de ser e de sofrer, dentro e fora do divã. Nessa direção, transcorrido um primeiro momento de trabalho, olho para um de meus argumentos que se tornaram nodais ao longo do caminho e ele me parece simples em sua formulação. A saber: a interação entre o ser humano e sua atual tecnologia permite que hoje um sujeito ganhe amplo conhecimento a respeito da vida inconsciente de outrem, sem que este tenha sua percepção minimamente despertada ao longo do processo1. O clássico Onde era Isso há de ser Eu agora divide espaço com o recente Onde era Isso há de ser Eles. Em outras palavras, a análise pessoal, o treinamento clínico e a introjeção da ética psicanalítica – balizadora do poder que emana de nosso ofício – não figuram mais como o único método de se produzir o tão específico saber metapsicológico. Além disso, e como se este primeiro ponto já não fosse contundente o bastante, uma segunda parte da investigação levanta a ideia de que a apropriação de nossa vida inconsciente por terceiros é favorecida por meio de transformações intersubjetivas e intrapsíquicas, culturais e superegóicas. Por exemplo, hoje constatamos a ascensão de todo um zeitgeist em torno de hiperconexão, hiperexposição e compartilhamento. O culto à transparência – pressão inconsciente encontrada por dentro e por fora de cada um de nós – é uma das pedras angulares que parece sustentar a captura desavisada de nossa psicologia profunda2.

Assim, se mesmo uma pequena parte dessas teses forem verdadeiras, elas não nos interessam de imediato e diretamente? Não se torna quase imperativo comparar a natureza e o alcance de cada um dos dois expedientes – o tradicional-analógico e o contemporâneo-digital – capazes de elevar nossa vida pulsional ao patamar de símbolos e representações? Não fazê-lo me soa como uma escolha intelectual displicente, senão negligente, que implica no sério risco de privar nosso campo teórico-clínico do encontro com uma nova gramática presente em nossa civilização – incluindo aí a sala de análise e a dupla analítica. Em mais de uma oportunidade nossa área se renovou quando permeável ao seu tempo, quando deixou suas portas e sentidos abertos aos habitantes dos mundos lá fora. Por outro lado, quantas vezes a arte já não retratou o embotar do pensamento e do juízo por meio de imagens de distância e isolamento? Por exemplo, na figura de uma casa geograficamente ilhada onde seus moradores passam a flertar com a loucura. Ou seja, do meu ponto de vista, vejo esta investigação como minha própria maneira de preservar o legado de todos aqueles que nos antecederam, e de preparar o terreno para que a Psicanálise continue a florescer com vigor.

Dito isto, eu me colocaria agora a caminho de entrar nos detalhes do processo aqui nomeado como Onde era Isso há de ser Eles. Provavelmente eu começaria pelo tema do big data, buscaria conceituar o que são dados e metadados, assim como introduziria a ideia que hoje o digital não se refere mais apenas aos nossos computadores, tablets e smartphones, mas, sobretudo, também aos nossos carros, relógios, geladeiras, aspiradores, brinquedos, etc. Ao final, eu chegaria próximo da conclusão de que as pegadas que deixamos no digital (em especial aquelas mais banais e periféricas, e nem tanto o conteúdo mais sensível e privado) podem ser entendidas como pequenos fragmentos a partir dos quais elementos de nossa vida inconsciente são revelados. Algo semelhante a quem busca um documento rasgado em pequenos pedaços no lixo, e vagarosamente vai reconstituindo sua mensagem original como um quebra-cabeças. Em seguida, eu buscaria ser minucioso em explicitar casos reais onde essa dinâmica se mostrasse em ação da forma mais didática possível, o que facilitaria meu esforço de tradução para conclusões em linguagem psicanalítica1,2.

No entanto, convidado a falar ou a escrever sobre o tema, tenho aprendido que tais ideias contém um grande potencial de provocar reações de natureza paranóica, e, portanto, atrofia do pensamento. Devo dizer uma ou outra palavra sobre isto antes de continuar. De fato, tudo o que é novo e desconhecido (não-Eu) pode facilmente despertar as camadas mais primitivas, radicais e violentas de nossa psique, e não faltarão referências de Freud, Klein, Bion, Winicott e outros para refletir sobre tais movimentos. Porém, acredito que não apenas a novidade do digital é responsável por esta reação. Acho que a própria ideia de ser transparente diante de um outro pode evocar angústias, desejos e fantasias de todo tipo. Lembro aqui das difíceis situações clínicas onde um paciente experimenta que seu analista detém acesso direto ao Todo de si – um olhar de raio-x que tudo ilumina, tudo vê e tudo sabe. Pois bem, penso que diante deste tema específico nos encontramos próximos a tal paciente, e isto acontece porque a pérola de nossa alucinação se secreta em torno de um grão de areia real e contemporâneo – objeto de meu interesse científico. Assim, é a partir dessa chave que tento compreender as reações de colegas que passam a ver no digital, em meus argumentos ou mesmo em minha pessoa algum tipo de objeto mau, de objeto bizarro, ou pelo menos de um herege. Ou então, inversamente, há uma atitude sintomática que lembra a de Estocolmo, onde as pessoas passam a gostar de mim ou de meus argumentos sem tê-los apreendido em sua essência, como se estivessem se submetendo a algum personagem que lhes ameaça. Nesses momentos, o maniqueísmo e a certeza quanto ao que é desconhecido cresce: “sabemos o que é a internet, é um lugar de não-pensamento, de não-existência, e nada mais”; Com sotaque moral: “o digital corrói as relações humanas, precisamos proteger nossos jovens”; Com pressa, prevendo o futuro: “o digital ou a máquina podem até se aproximar das faculdades da mente humana, mas nunca serão capazes de captar qualquer aspecto do inconsciente”. Num estilo fálico: “se o digital não permite simbolizar exatamente como a mente humana em todas as suas nuances, ele não é capaz de simbolizar de forma alguma”; De forma melancólica: “não há nada de novo nesses desenvolvimentos tecnológicos do ser humano, apenas uma repetição do que já havia afirmado o autor X ao tratar do assunto Y”. E mais frequentemente, com condescendência: “isso é uma boa Sociologia, uma interessante Psicologia, mas não é Psicanálise”. Enfim, seja num caso ou em outro, o efeito mais inexorável de todas essas reações em arco-reflexo é o fim da curiosidade, e a morte da reflexão. De minha parte, tento aprender e manejar tais reações na intenção de sensibilizar o maior número possível de olhos abertos para a esfinge do que é contemporâneo. É neste ponto de solidão que me faz boa companhia o ensaio de Agamben:

O contemporâneo é aquele que percebe o escuro do seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa de interpelá-lo, algo que, mais do que toda a luz, dirige-se direta e singularmente a ele. Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provém de seu tempo3.

Ao longo de meu caminho tenho encontrado a preciosa companhia de amigos e colegas que parecem tolerar em seus rostos tal facho de trevas que hoje, paradoxalmente, provém de telas iluminadas. Nos momentos em que conseguimos atravessar a melancolia, o moralismo e a paranoia, nosso diálogo sugere comparar a ação da nova tecnologia com a ação simbolizante do processo analítico. A microscopia sobre alguns casos sugere que a parceria entre big data e inteligência artificial permite a simbolização de aspectos inconscientes-orgânicos e inconscientes-recalcados da mente humana. No primeiro caso, sua ação pode ser comparada ao conceito bioniano de Função-alfa, na medida em que a sensorialidade dos elementos-beta é elevada ao status elementos-alfa carregados de sentido. Por exemplo, no caso de mulheres que tem sua gravidez representada e percebida antes por algoritmos do que por sua própria psique. No segundo, se é a adivinhação de representações recalcadas que está em jogo, tal ação é comparável ao conceito freudiano de Construção. Por exemplo, no caso de jovens que são adivinhados pela máquina se estão mais ou menos ligados ao ideal do Eu de sua tradição, ou seja, se votam com mais ou menos liberdade em relação à voz de seus pais1, 2.

Além disso, vemos que tal linha de investigação favorece indiretamente a ampliação da escuta analítica em ambiente clínico. O esforço de sair de nossa cidade para visitar autores vizinhos parece nos recompensar com a criação de novas categorias perceptivas, e com a ressignificação de certas teorias psicanalíticas. Pela restrição de espaço, cito resumidamente algumas situações clínicas em que nossa escuta tem se revelado claramente alargada devido ao percurso estabelecido até aqui: Uma adolescente sofre e goza com sua compulsão de postar fotos íntimas e sensuais num perfil “anônimo” no Instagram, além de curtir o desespero de sua analista no lugar de testemunha de suas aventuras; Um rapaz de dezoito anos, profundamente mergulhado numa depressão marcada pelo tédio e pela apatia, que passa oito horas por dia no TikTok. Diz que usa o aplicativo para escapar do tédio, mas a cada vez emerge do celular ainda mais esvaziado e amortecido; Um paciente internado numa enfermaria psiquiátrica fica angustiado ao usar seu tablet, diz que o YouTube consegue ler seus pensamentos e lhe dirigir propagandas que manipulam seu comportamento; Um paciente adulto que verbaliza o desejo de se transformar numa rede gigantesca de dados, e então se transportar por completo para dentro de seu analista-nuvem; Uma paciente adulta cuja sexualidade infantil marcada pelo par exibicionismo/voyeurismo se atualiza no uso das redes sociais. Quando criança, a onisciência de sua imago materna lhe provocava assombro e fascínio. Hoje, seu treinamento em ciência da computação permite que ela descubra e use todas as senhas para monitorar seu namorado a partir de serviços de email, Facebook, etc.; Uma paciente atravessada pela lógica da hiperinformação pós-moderna que está sempre atualizada sobre tudo. Faz-se consciente e responsável por diversas lutas e causas progressistas, sempre a um passo de distância do burnout pelo excesso de percepção sobre os quatro cantos do planeta. A cada sessão deixa seu analista saturado e exausto ao se despejar sobre ele; Um menino faz uma pergunta para sua analista. Quando esta diz que não sabe a resposta, ele intervém: “então pergunta pro Google, ele é como Deus, ele sabe tudo”.  

A incidência do digital sobre a vida humana já se encontra infiltrada por toda a parte. Será que ela apenas dá uma nova forma ao que já existia? Em que medida propõe fenômenos de fato inéditos, do tipo que vemos mas não enxergamos? O quanto podemos tolerar a escuridão na qual estamos mergulhados, enquanto tentamos distinguir entre formas borradas e nossos fantasmas?

 

Bibliografia

1. Souza Leite, P. C. B. (2021a). A conquista do tempo: psicanálise, big data e o capitalismo de vigilância [Apresentação de trabalho]. Reunião Científica na SBPSP, São Paulo.

2. Souza Leite, P. C. B (2022). Hiperconectividade e Exaustão. Jornal de Psicanálise, São Paulo, v. 54, n.102, p.127-149, jun. 2022.

3. Agamben, G. (2006). O que é o contemporâneo? In G. Agamben, O que é o contemporâneo? e outros ensaios (V. N. Honesko, Trad.). Argos.

Pedro Colli Badino de Souza Leite é membro efetivo e docente pela SBPSP. Coordenador do grupo de estudos O mal-estar na civilização digital. Autor dos livros Uma flor nasceu na rua! A Psicanálise que continua a brotar por aí, e O mal-estar na civilização digital (no prelo).
Contatos: pedrocolli@gmail.com e @pedrocolli 

Imagem: Shutterstock (n. 1554752357) 

 
 
“As opiniões publicadas neste texto são de responsabilidade exclusiva do autor.” 


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