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O tempo circular e a marmota eletrônica

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*Alexandre Socha

A constatação de que cada pessoa experimenta de maneira muito particular uma situação que se oferece como coletiva e compartilhada pode, à primeira vista, soar demasiado óbvia. Sua complexidade, no entanto, se desdobra na clínica psicanalítica durante a pandemia, quando os modos singulares de se viver e de sobreviver a ela são colocados em evidência. Se as marcadas diferenças sociais e econômicas insistem em nos explicitar que não vivemos todos a mesma pandemia, somam-se aqui também as diferenças de repertório simbólico e de estruturação psíquica de cada um.

Mesmo assim, ao longo dos últimos meses escutei de diferentes pessoas um comentário semelhante, que se repetia aqui e acolá. Trata-se do sentimento incessante de que os dias se repetem, o dia seguinte idêntico ao dia anterior, todos iguais. Não raro utilizam como referência o filme Feitiço do Tempo (1993), para descrever essa espécie de “dia da marmota” ao qual encontram-se aprisionadas. No filme em questão, a passagem do tempo é interrompida e o protagonista acorda sempre no mesmo dia, não importando nada do que tentasse fazer para romper a repetição.

Tal sentimento costuma ser relacionado, pelas pessoas que o relatam, com a perda dos marcadores que lhes permitiam reconhecer uma segunda-feira como segunda-feira, quarta como quarta e domingo como domingo. Trabalho, estudo, lazer e o cuidado com as crianças se intercalam sem as suas usuais distinções espaço-temporais, isso quando não mesmo justapostos. Passado os primeiros meses, alguns puderam criar novas estratégias para medir a passagem do tempo, outros continuam às voltas com a questão. Todos, no entanto, parecem estar lidando com certo acirramento na dissonância entre o tempo do relógio e o tempo vivido. As horas se arrastam lentamente, enquanto o mês passa voando, ou vice-versa.

À repetição dos dias acrescenta-se ainda outro sentimento: o da estranheza de que dentro de casa nada de novo parece acontecer enquanto, simultaneamente, do lado de fora o ritmo dos eventos é frenético. O colapso na saúde pública, as ameaças da necropolítica brasileira, o escalonamento das tensões sociais e institucionais. Tudo ocorre em uma velocidade tal, que basta um dia sem acompanhar o noticiário para tornar-se o ermitão de uma longínqua floresta. É como se, agora, afirmam alguns, tudo acontecesse do lado de fora, onde a urgência e gravidade dos fatos exigem constante atenção. Curiosamente, enquanto os olhos acompanham o movimento ininterrupto pelas telas do celular e do computador, paralisam quando ensaiam, por um instante, retornar a si.

Frente ao contraponto sugerido pela “marmota” e pelo contraste dentro-fora, fui visitado por uma analogia musical.

Uma grande parte da música ocidental que escutamos possui uma forma linear, com começo, meio e fim. A “forma sonata”, largamente utilizada na música de concerto, ou a “forma canção”, explorada pela música popular, são formas orientadas por um senso de narrativa. Saímos do ponto A, passamos pelo B, chegamos ao C, podemos voltar ao A e daí por diante.

Essa temporalidade sequencial é radicalmente distinta da que encontramos em outras tradições musicais, como, por exemplo, em músicas tribais, indígenas, árabes, nas percussões africanas ou em alguns gêneros de música eletrônica. Nessas, não há proposto um caminho narrativo e historicizante. São antes formas circulares, texturas sonoras que instauram um tempo infinito, um eterno agora. Novos elementos podem até ser acrescentados (um instrumento diferente, uma nova frase melódica ou rítmica que é incorporada), mas isso é feito de modo tão sutil que não rompe sua condição circular.

Se as escutamos “de fora”, com ouvidos acostumados à música linear, sua ausência de progressão pode se tornar cansativa e soar monótona. Ao embarcarmos nela, entretanto, o vazio melódico é preenchido por um tecido complexo de ritmos e timbres, criando uma temporalidade capaz de induzir o ouvinte a estados meditativos, de transe ou êxtase.

Mas, o que aconteceria se essa música parecesse não terminar nunca? Como a escutaríamos se ela se arrastasse por dias, meses, indefinidamente, sem que tivéssemos uma previsão clara de seu fim?

Uma segunda analogia pode ser convocada. O psicanalista inglês D. W. Winnicott, ao descrever os momentos iniciais do desenvolvimento humano, propõe como um de seus pilares fundamentais aquilo que chama de continuidade de ser (going-on-being). Esta seria como um fio que perpassa as diferentes situações vivida pelo bebê (o espaço entre a amamentação, o sono, ser banhado, embalado, etc.) reunindo-as na permanência de uma unidade, uma unidade de si mesmo. Temos aqui, implícita, a ideia de que é justamente o movimento entre essas experiências aquilo que cria a sensação de continuidade processual.

A pergunta, então, novamente se coloca: e se não houvesse, para esse bebê winnicottiano, uma discriminação mínima entre os momentos vividos, entre o estar desperto e dormindo, entre sentir fome e saciedade? Poderíamos supor, imaginativamente, que neste caso o tempo para, restando nada além do aprisionamento a um presente estático. Para alguns isso pode se traduzir em tédio, para outros, em ansiedade ou ainda em uma profunda angústia.

Talvez tivesse isso em mente, sem perceber, quando dias atrás um analisando me contava sobre seu comportamento impulsivo de compras durante a pandemia. Havia comprado um pacote de feltros, antes disso uma parafusadeira e antes um jogo de porta-copos. “Nada disso precisava tanto assim”, concluiu. Lembrei de conversas com alguns amigos que diziam estar também comprando pequenos apetrechos mais do que o habitual. Além dos víveres, materiais para bricolagem, acessórios de cozinha e bricabraques diversos.

Com frequência, fica subjacente a ideia de que “quando tal coisa chegar, aí sim vou poder fazer isso ou aquilo outro”. Ou seja, com as panelas novas, a comida certamente ficará mais gostosa, com o aspirador moderno, a casa ficará mais limpa, com o kit de ferramentas, tudo ficará consertado. Obviamente, não é o que acontece. Falta, muitas vezes, o ânimo para cozinhar, o aspirador acaba não alterando o aspecto da casa tanto assim, o conserto não alcança o que foi quebrado e passa-se então ao próximo item.

Ao escutar o analisando que se questionava sobre tais movimentos, tive a impressão de que estávamos diante de algo diferente da habitual compulsão por compras, do preenchimento de um vazio ou do movimento evacuativo de angústias. Na ocasião, disse-lhe que, mais do que o objeto em si, talvez fosse a experiência de esperar por algo, o que estaria sendo procurado e ansiado. Uma ação que lhe fizesse tomar posse do tempo, antecipando o som do interfone que toca, o pacote finalmente nas mãos sendo aberto. Esperar, manter-se em espera e nela sentir-se vivo.

Pensando agora, talvez buscasse a criação de uma chegada, um evento que pudesse romper a circularidade e instaurar novas temporalidades à música de sua quarentena.

*Alexandre Socha é psicanalista, membro associado da SBPSP.

Crédito: Adrian Borda / Reprodução 



Comentários

One reply on “O tempo circular e a marmota eletrônica”

Regina Rocha disse:

Excelente!

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