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O que é Psicanálise?

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A Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, comemorando seus 70 anos de existência, e a minha idade, ambas longevas, sugeriram-me a escolha: uma conversa. Falar de forma simples de coisas muito significativas, ao mesmo tempo que muito complexas em sua essência. Não acessíveis a explicações, mas a nossa sensibilidade. É como eu entendo os bons objetos, que me ajudam na difícil e estimulante tarefa do trabalho com a vida mental.

A psicanálise é para mim uma função, uma atitude, impossível de definir. Um olhar para a vida, que é um sonho. Uma tentativa de compreendê-la um pouquinho, adentrando-a, numa viagem sem fim, em sua profundidade infinita. É como penso entender o inconsciente. Morada das forças desconhecidas e incontroláveis, no dizer de Grodeck, e que Freud elege como uma das mais felizes formas de expressar o inconsciente, o id, em seu trabalho O ego e o id.

Bion assinala, quando elogiado de criativo, que nunca criara nada, que as coisas estão no ar. Entendo o ar como metáfora do espaço infinito; o inconsciente como infinito; e a psicanálise como um veículo inventado por Freud, tal como ele mesmo a concebe, para permitir-nos percorrer esse inconsciente. Proponho entender a psicanálise como uma possibilidade de vivenciar um pouquinho, cada vez mais um pouquinho, o desconhecido, o mistério, a magia da vida. Até onde minha memória alcança, sempre vivenciei essas forças desconhecidas. Sempre tiveram presença marcante as perguntas que incansavelmente me ocuparam. Hoje penso que esse contato, essas vivências, foram estímulos determinantes que me levaram à psicanálise.

Cecília Meirelles, num de seus momentos poéticos, deixa um recado em sua porta, para quem pudesse chegar e não a encontrasse: “Não me pergunte o que aconteceu. Saímos de braços dados, a noite escura mais eu”. É também como entendo a movimentação que fazemos na atividade psicanalítica com nossos analisandos.

Clarice Lispector diz: “A vida é um sonho, só que de olhos abertos, o que atrapalha tudo”. A psicanálise é, para mim, um sonho numa noite escura. Porque diminuímos o foco sensoperceptivo para mergulharmos na noite do inconsciente.

Voltando à proposta de Bion, que se recusa aos elogios de autoria, de criador, relato o que um homem simples do interior disse para sua patroa: “Olha, dona Maria, eu sempre pensei que eu vivia a vida. Hoje sei que a vida é que véve eu”. Véve destaca a pouca escolaridade, mas, convenhamos, muita sabedoria. Alguma semelhança com a definição de inconsciente dada por Grodeck e aplaudida por Freud?

Bion dizia: “Eu não leio livros, leio pessoas”. Eça de Queiroz – outra época, outra língua e outro país – em seu romance Primo Basílio traz um momento em que um personagem, em acirrada discussão com outro, diz, com veemência: – “Eu não leio livros, leio pessoas”. Quem seria o autor deste criativo pensamento? Bion, suponho, diria: “Nem eu, nem ele. Captamos. Está no ar.” 

Esses pequenos relatos me propõem o que entendo por transcendência. E nessa corrente de especulação Imaginativa, nesse sonho acordado, de olhos quase fechados, penso que, se Freud tivesse disposto de mais tempo, acrescentaria, em seus Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, quando aponta as fases de desenvolvimento da libido – oral, anal, fálica e genital – a fase transcendental. Não estaria nesse caminho em seus trabalhos metapsicológicos sobre sublimação, que se lamenta até hoje terem sido perdidos?

Einstein, sempre indagado sobre sua crença religiosa, se ateu ou não, responde que se curvava diante do mistério. E que se isso pudesse ser considerado religião, que o considerassem então profundamente religioso. Faço novamente uma analogia desse pensamento com o de outro homem simples, semi-alfabetizado e com grande sabedoria. Perguntei-lhe se não achava que uma determinada situação estaria errada. Ele me respondeu: “O errado é o certo que ainda não compreendemos”. Comparo esta reflexão com a da consagrada escritora Clarice Lispector, que caminha em toda a sua obra pelas profundidades da vida mental, pelo inconsciente:

Só depois é que eu entendi: o que parece “falta de sentido” – é o sentido. Todo momento de “falta de sentido” é exatamente a assustadora certeza de que ali há sentido e que não somente eu não alcanço, como não quero, porque não tenho garantias.          

Termino essa caminhada breve nessa noite escura, contando algo que aconteceu há cerca de quatro décadas, quando ensaiava meus primeiros passos no estágio psiquiátrico que fiz na Escola Paulista de Medicina, cátedra do Professor Darcy de Mendonça Uchoa, um dos pioneiros da psicanálise em nosso país. Estava preparado para fazer minha primeira anamnese psiquiátrica, no Hospital Psiquiátrico da Água Funda. Um paciente psicótico, contido com camisa de força, é trazido por um enfermeiro. Antes que eu lhe faça perguntas, é ele quem as faz. Duas apenas.

– Por que você está com medo de mim?

– Não estou com medo de você, respondo.

– Por que você mente?

Sonho até hoje poder ampliar, cada vez mais, minha coragem e meu amor pela verdade.

 

Luciano Marcondes Godoy é analista didata e professor do Instituto de Psicanálise Durval Marcondes, da SBPSP. Médico formado em 1965 pela Escola Paulista de Medicina, atual UNIFESP. 

Imagem: A Persistência da Memória, Salvador Dalí, 1931



Comentários

4 replies on “O que é Psicanálise?”

Breno Santos Pacheco disse:

Macapá, 09 de agosto de 2021

https://www.youtube.com/watch?v=GUSFgXpyZvg

Ser feliz ou ser fiel ao seu próprio desejo? Maria Homem.

Ainda quero saber quem sou. Na verdade, o quê sou. Como coisa, como objeto, não como pessoa. Porque esta definição, pessoa, sei QUEM sou. Para além de uma definição biográfica de trajetória de militância política ou carreira acadêmica ou profissional, talvez minha definição MAIOR seja a do meu desejo de REALIZAR a solidariedade.

Por isso, o forte desejo de abandonar minha formação original, o DIREITO, porque não muda nada. Desde Roma, até hoje em dia, o direito ainda faz o que o jurisconsulto fazia.

Deste modo, sei quem sou. É coerente meu desejo, meu querer, minha vontade. “Estou aqui para ajudar” ou, como um extraterrestre aliado “Eu vim em missão de paz”.

Mas não sei exatamente como. E é disso que estou atrás, de minha definição como coisa, como “res”, como ferramenta. Porque se sou solidário e não posso REALIZAR minha solidariedade, não vale nada minha VONTADE, QUERER, DESEJO.

Clarice Lispector, escritora, em entrevista, foi perguntada como a literatura poderia aliviar a dor de mineirinho que atingia ela própria no 13º tiro disparado para “matar” um “bandido” quando, para matar, “um só bastava. O resto era vontade de matar” (palavras da autora); e além de aliviar sua dor, o entrevistador ainda pergunta “como a literatura muda o mundo” e ela singelamente respondeu “não muda nada”. É a frustração de muitos escritores.

Do mesmo modo, em diversos casos, a psicologia precisa FAZER (?) o paciente “entender”/enxergar que não importa quantas Ave-Marias ou Pai-nossos ele reze, nada vai mudar. Assim como precisa retirar a visão idealizada da vida e do mundo.

Estou à procura.

Sou poeta até que me façam “desdizer” isso. E há até quem me aprove.

Mas isso não basta.

O sonho é mais.

Mas a vida precisa ser VIVIDA, não necessariamente com um sentido, MAS COM UMA EXISTÊNCIA COTIDIANA QUE TENHA “ALGUM SENTIDO”, da mesma forma que o gari limpa a cidade, eu preciso fazer algo útil, ser útil – no máximo em que puder ser. Não que a poesia seja inútil. Mas minha profissão precisa ser a demanda da minha alma e não uma escolha “sem sal”.

Por isto, vim aqui para falar de tudo isso.

Foi uma escolha.

Que espero que tenha sido a “vida” que “viveu” em mim para “chegar” até “aqui”.

Maria José Vieira Rebouças disse:

Antes de um comentário, peço uma explicação da IMAGEM que encima o texto, tô muito curiosa, agradeço antecipadamente !!!

Elza Liliana Mazzuca Vieira disse:

Gostei de suas reflexões e comparações, sobre a psicanálise.

Cecília V. P. de Mello disse:

Leitura absolutamente individual da imagem, logicamente construída sobre símbolos e valores incutidos pela cultura e vivências rebeldes no confronto com o estabelecido. Semelhante à interpretação dos sonhos:
Seres laboriosos se propõem a desvelar o segredo encerrado no cofre do tempo.
Esforço inútil…
Ainda perseguindo esse intento com novas ferramentas, enfim conseguem, com astúcia, romper o cofre, e nada de novo acontece, é revelado.
É esse o segredo?
O que é o falo? O que é o falo- tempo, o falo-língua? O falo- tronco?
A serpente é falo?
Vejo como astúcia…
O segredo revelado no sonho?
Ao longe, as montanhas não fecham completamente o horizonte. Não são um bloco contínuo, monolítico: são fragmentadas, têm rachaduras, côncavos profundos inexplorados.
Mas, na sequência, a luz…
Depois de percorrer as reentrâncias, a luz…
Crença?

Não sou da área Psi. Sou professora de Português e artista plástica. No decorrer de meus 78 anos, fiz apenas 7 meses de terapia psicanalítica breve e mais de 20 anos de Biodança.

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