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O Desamparo na Cidade

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* Adriana Casagrande e Rita Andréa Alcântara de Mello

Como descrever uma cidade? Como descrever uma experiência com a cidade?

Vem à cabeça a personagem de Saint-Preux em A nova Heloisa, de Rousseau, quando narra sua experiência com uma cidade grande pela primeira vez: “Eu começo a sentir a embriaguez a que essa vida agitada e tumultuosa me condena. Com tal quantidade de objetos desfilando diante dos meus olhos, eu vou ficando aturdido…perturbam meus sentimentos, de modo a fazer com que eu esqueça o que sou e qual o meu lugar”.

Essa vivência pode ocorrer quando nos defrontamos com qualquer metrópole como Tóquio, Deli, Nova York, Cidade do México ou Pequim. Segundo a ONU, a previsão para 2050 é que seremos cerca de 9,8 bilhões de habitantes no planeta e, nas próximas décadas, as principais cidades terão mais de 10 milhões de habitantes.

Na década de 60, quando comecei a conhecer São Paulo, a cidade possuía aproximadamente quatro milhões de habitantes. Hoje, em um pouco mais de meio século, a população e a cidade mais que triplicaram, multiplicando, e muito, os seus problemas.

A cidade, com suas referências históricas, cedeu lugar a conglomerados indiferenciados. O espaço coletivo foi diminuindo, favorecendo o anonimato de pessoas e lugares. O crescimento, desordenado e desenfreado, favoreceu o rompimento das possibilidades de troca, de construções e de elaboração no tecido cultural da cidade.

Com esses problemas, como deixar de associar condições da vida urbana com condições de humanidade da população?

A cidade foi mudando para dar mais mobilidade e escoamento em suas vias. Surgiram grandes avenidas, marginais e calçadões dificultando o contato, a troca e a noção de individualidade; transformamo-nos em uma grande massa compactada, onde o tempo é sempre escasso, a correria é cotidiana, as pessoas são anônimas e os lugares sem narrativa.

O coração de São Paulo foi se transformando em um lugar frio e vazio, e essa “desordenação” deu lugar a uma cidade fragmentada, quebrando elos de comunicação e gerando grupos de pessoas isoladas, que sobrevivem num meio cultural empobrecido.

No último século, a cidade, relativamente segura, passou a ser relacionada a um lugar perigoso.  Os sociólogos B. Diken e C. Laustsen chegam a sugerir que o milenar “vínculo entre civilização e barbárie se inverteu. A vida urbana se transformou num estado de natureza caracterizado pelo domínio do terror, acompanhado pelo medo onipresente”.

Quando a cidade deixa de exercer sua função geradora e organizadora de sentidos, há a possibilidade de uma desagregação da rede simbólica que sustenta as trocas intersubjetivas, voltando a modos de funcionamento primitivos, formando aglomerações instáveis, desestabilizadoras e refratárias nas relações entre seus habitantes.

A cidade é o palco dos nossos dramas cotidianos; podemos fazer um paralelo dessa cidade fria, vazia, insegura e assustadora com os sentimentos despertos no morador da megalópole – a vivência do drama do vazio, da falta de sentido, do medo e do desamparo.

Em uma entrevista recente, o sociólogo Danilo Lima fala da cidade como ‘pessoa’; se a cidade é uma pessoa, que pessoa nossa cidade se tornou? Caótica, violenta, sem história, culturalmente empobrecida, sem condições de acolher seus filhos-cidadãos. Uma cidade em crise que espelha a crise que estamos vivendo psiquicamente.

Através de Winnicott conhecemos a mãe suficientemente boa, que oferece ao bebê condições para desenvolver seu potencial de vida. Sim, nascemos com um potencial e necessitamos de um espaço, onde possamos dar continuidade a esse desenvolvimento. Esse espaço é conquistado na relação mãe-bebê, mas não podemos esquecer que se faz necessária a presença de objetos e experiências culturais significativas para o amadurecimento. Se houver a ausência dessas experiências tão necessárias, o desamparo pode se instalar.

Voltando ao personagem de Nova Heloisa, que traz o contraste entre a pureza da vida – em contato com a natureza – e a corrupção da sociedade urbana; Rousseau apresenta o sentimento de embriaguez de Saint-Preux ao se defrontar, pela primeira vez, com a agitação e tumulto de Paris. Por vezes somos invadidos por esse sentimento frente ao ritmo alucinado da “cidade que nunca dorme” e da violência presente em seu dia a dia. Cotidianamente, vamos mantendo uma relação desumanizada com a cidade, tornando-nos desconectados das pessoas, do meio e de nós mesmos. O desamparo que experimentamos com essa desconexão pode nos paralisar. Passamos a sobreviver, e não mais viver todo o nosso potencial de vida.

Será que assim como Saint-Preux, estamos perto de esquecer quem somos, ou qual é o nosso lugar?

 

Adriana Casagrande é membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e especialista em Psicoterapia Psicanalítica pelo CEPSI

Rita Andréa Alcântara de Mello é membro filiado do Instituto Durval Marcondes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e membro do Departamento de Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.



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