Encontre psicanalistas membros e membros filiados


Sobre a Formação do Psicanalista

Home      Blog      Formação em Psicanálise      Sobre a Formação do Psicanalista

Estou falando de Georg Groddeck, o qual não se cansa de insistir que aquilo que chamamos de nosso ego comporta-se essencialmente de modo passivo na vida, e que, como ele o expressa, nós somos “vividos” por forças desconhecidas e incontroláveis. (S. Freud, O Ego e o Id)

 

O Dr. José Longman, analista didata, de notória sabedoria e competência, da SBPSP, já falecido, com quem me analisei durante 12 anos e cuja análise, essencial para minha vida, só foi interrompida devido à sua morte, costumava assinalar que o trabalho de um psicanalista é lidar com nitroglicerina. Poucas pessoas, porém, dão-se conta da seriedade da questão e, ao contrário, muitos nutrem a ilusão de que ser psicanalista é exercer uma profissão glamurosa em ambientes sofisticados em que se pode ganhar dinheiro fácil. Atualmente existem propagandas nas redes sociais que vendem “formações de psicanálise” dizendo literalmente o que acabo de mencionar. Em poucos meses por meio de um curso online você se tornará um profissional habilitado e vai ficar rico. (Para quem quiser ficar rico, também dizia Longman, é preciso procurar outra qualificação que não a de psicanalista, que, quando muito e com muito esforço, pode viver decentemente, mas jamais ficará milionário com ela – Freud já sabia bem disso).

No livro “Bion in New York and São Paulo”, p. 39 e 40, ele escreve:

Somos animais extremamente perigosos; entre todos os animais ferozes que habitam esse planeta o humano tem sido bem-sucedido em matar todos os seus rivais – exceto o vírus…

Na sessão analítica nos ocupamos com dois animais ferozes e perigosos, um dos quais – possivelmente ambos – tem ao mesmo tempo o desejo de ser amistoso e útil para o outro… Penso que é uma obrigação permanecer civilizado, porém permanecer civilizado não é o mesmo que ficar sem perceber o que é de fato o caráter humano. Estamos ocupados com impulsos poderosos que são tudo menos civilizados – assassinato, ódio, amor, rivalidade. Portanto temos de ser sensíveis e alertas à poderosa natureza emocional de dois objetos na mesma sala ao mesmo tempo – tanto quanto a este elemento que quer ser útil… Defrontamo-nos com um paradoxo; ambos lutamos para manter uma tal capacidade civilizada tanto quanto formos capazes ao mesmo tempo que nos esforçamos para tornar evidente a natureza primitiva da situação. (tradução livre minha)

Destaco aqui a importância do atendimento presencial, visto que o distanciamento virtual pode obscurecer ou impedir o confronto com essas percepções perturbadoras, que mais provavelmente ficarão desapercebidas.

Tal constatação não é algo que se pode aprender ou efetivamente vivenciar por meio de conhecimentos teóricos. Atualmente, além de inúmeros cursos teóricos sobre psicanálise que surgem no contexto acadêmico (universidades), alguns muitos sérios e respeitáveis (outros nem tanto), pululam cursos de psicanálise que são oferecidos a torto e a direito por pessoas que se autodenominam psicanalistas que aparentemente sabem tudo de todas as teorias psicanalíticas. E, o que acontece amiúde, é que quase sempre nunca se submeteram a uma verdadeira análise pessoal, ou quando muito, passaram por coisas que, no meu entendimento, são meros simulacros toscos de psicanálise.

Todo conhecimento analítico teórico não substitui o que é mais relevante: não é possível alguém ter real noção do que de fato é psicanálise sem ter se submetido a uma profunda, extensa, intensa e longa análise pessoal. Não existe analista que não tenha passado ele mesmo muitos e muitos anos num divã.

Em recente homenagem ao colega Antônio Carlos Eva, didata recentemente falecido da nossa Sociedade, Deocleciano Bendocchi Alves, hoje com mais de 90 anos, lembrou-se de um encontro de colegas em um bar conhecido quando ele e o Eva estavam finalizando suas formações no nosso Instituto nos anos 1970. Eva anunciou, para surpresa dos demais presentes, que estava iniciando uma reanálise. Considerava que era muito importante que um analista, de tempos em tempos, voltasse para uma nova análise, seguindo as recomendações de Freud. Os demais deram-se conta dessa premente necessidade e todos iniciaram novas análises. Eu mesmo passei longos anos nos divãs de três diferentes analistas didatas em análises que se estenderam muito e muito mais do que os protocolares 5 anos obrigatórios com 4 sessões semanais exigidos por nossa formação. Como também dizia Frank Philips, outro decano nosso já há muito falecido e que foi ele mesmo analisado por Melanie Klein e por Bion, 5 anos de análise é somente o “hors d’oeuvre” (a entrada, o couvert) – a refeição verdadeira ainda nem teria começado.

Para quê tudo isso? Para quê tanta análise? Considero que não existe a possibilidade de se dar conta da real dimensão daquilo com que lidamos ao atender outras pessoas sem que tenhamos nos defrontado com o ISSO que nos habita e que desconhecemos na maior parte. O Isso que é um turbilhão primevo e primordial que não obstante pode nos levar para onde nem imaginamos se não tivermos uma noção dele. Na teoria pode parecer algo fácil, mas basta alguém se deitar num divã para um efetivo processo analítico para constatar que a vivência pode se assemelhar a atravessar um oceano de navio a vela tendo de passar por inúmeras tempestades e eventuais furacões. O analista, que realmente é um psicanalista, terá de se perceber disponível para tal aventura em mares desconhecidos e perigosos com cada um de seus analisandos. Cada um é uma travessia diferente. A possibilidade de se fazer uma trajetória bem-sucedida no caminho de encontrar a verdade do analisando está diretamente relacionada à capacidade do próprio analista ter suportado a turbulenta viagem ao encontro de si mesmo, na sua análise pessoal.

Toda a teoria aprendida só terá real sentido se tiver sido significada, realizada (de realize em inglês) na própria experiência analítica, fundamentalmente nos anos que tiver passado em um divã. As supervisões, seminários clínicos e teóricos adquirem realidade basicamente por meio da análise do analista.

O que tem distinguido e dado a sólida reputação obtida com muito esforço à Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo é a valorização que sempre deu à formação prática, clínica, daqueles que se submetem à sua formação, que desde o início, e não sem causa, considera essencial a análise de seus membros filiados em frequência de 4 sessões semanais por pelo menos 5 anos, além de longas horas de supervisões (no mínimo 160) que complementam os cursos teóricos e seminários clínicos.

Reitero que sem uma profunda, intensa e extensa análise pessoal do analista que deve ser realizada por alguém que tenha o reconhecimento do Instituto de Psicanálise e da Sociedade de Psicanálise, a qual pertence, como sendo um profissional que conheça com profundidade aquilo que faz e que pratique psicanálise de fato e não algo que possa se assemelhar a ela e tampouco algo que seja um desvio dela, da mesma maneira que em todas as instituições de reconhecida e respeitada reputação ninguém faz um curso de graduação sem ter um professor que seja mestre ou doutor, e tampouco faz uma pós graduação sem ser orientado por um colega mais experiente que tenha ao menos o doutorado. Para alguém se qualificar Livre Docente ou Professor Titular há uma árdua jornada. O mesmo deve ocorrer para o profissional reconhecido como tendo um notório saber na instituição analítica. Esse é o analista didata que para chegar a tal função submete-se a um longo trajeto de avaliação por seus pares e apresentação de muitos trabalhos, depois de já ter uma longa experiência como docente. As especificidades da academia e da formação de psicanalista são diferentes, sobretudo aquelas formações ligadas à IPA, visto a insubstituível necessidade de submissão a uma análise didática, a longas supervisões, além dos cursos teóricos. As tentativas de facilitação da formação e diminuição do  tempo de análise por meio de argumentos associados às dificuldades da vida moderna e também de natureza econômica não encontram respaldo na história da própria psicanálise, pois os períodos em que teve uma  produção extraordinária e o surgimento de seus mais notórios expoentes, a começar pelo próprio Sigmund Freud, foram perpassados por duas grandes guerras mundiais, gravíssimas crises políticas e econômicas com muita penúria, sem que os parâmetros de qualidade exigidos fossem questionados – e certamente devido a essa manutenção de critérios, a reputação de qualidade e de diferenciação das Sociedades associadas à IPA tem se mantido até agora.

Finalizo com outra citação de Bion em “Estudos Psicanalíticos Revisados” (Second Thoughts).

Melanie Klein acreditava que em todos os analisandos se poderiam detectar mecanismos psicóticos e que estes últimos precisariam ser desnudados para que a análise fosse satisfatória. Estou de acordo com isso – não há postulante à análise que não tema os elementos psicóticos nele existentes e não creia poder atingir um ajustamento satisfatório, sem que se analisem esses elementos. Uma solução desse problema é particularmente perigosa para quem estiver engajado em dar formação: o indivíduo busca lidar com dito medo tornando-se candidato, de sorte que o fato de ser aceito para formação possa ser tomado como um atestado oficial de imunidade passado por aqueles que se qualificam para sabê-lo. Com a ajuda do próprio psicanalista, poderá seguir fugindo de se defrontar com o seu temor, e terminar por vir a ser um pseudoanalista. Devido à identificação projetiva (na qual não acredita), sua qualificação como analista consiste na capacidade de se vangloriar de se haver libertado da psicose – motivo por que menospreza os pacientes e os colegas. (p. 181)

 

Referências

Bion, W.R. (1980). Bion in New York and São Paulo. Perthshire: Clunie Press.
Bion, W.R. (1988). Estudos Psicanalíticos Revisados (Second Thoughts). Rio: Imago.  Publicado originalmente em 1967.
Freud, S. (1969). O Ego e o Id. In: S. Freud, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio: Imago. Publicado originalmente em 1923.

Claudio Castelo Filho é membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP, doutor em Psicologia Social e livre docente em Psicologia Clínica pela USP. Atual editor da Revista Brasileira de Psicanálise. 

Imagem: Viagem ao desconhecido, Claudio Castelo Filho (grafite sobre papel). 

As opiniões dos textos publicados no Blog da SBPSP são de responsabilidade exclusiva dos autores.    



Comentários

5 replies on “Sobre a Formação do Psicanalista”

Amedeo Papa disse:

Muito bom e oportuno ! Obrigado

Marina J Alfredo disse:

Excelente texto.

Alessandra Gordon disse:

Muito oportuno o seu texto Cláudio! Nosso percurso demanda paciência, persistência e muito trabalho analítico. Abraço

Elsa Susemihl disse:

Claudio!
muito importante levar im consideração essas sérias e rigorosas considerações!! Parabéns!!
abs

Mariana disse:

Excelente!

mais comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *