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Excesso de realidade

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No mundo da globalização, o filósofo coreano Byung-Chul Han, em seu ensaio Sociedade do Cansaço, aponta que há um excesso de positividade, que faz surgir novas formas de violência que, pela superprodução, superdesempenho ou supercomunicação, provocam a exaustão, o esgotamento e o sufocamento frente à demasia. Nesse contexto, guerrearemos contra nós mesmos e não contra um inimigo externo, sendo, por exemplo, a depressão uma das fortes manifestações emocionais observadas na atualidade. O autor, que, há 10 anos, curiosamente desenvolveu a tese de que o século XX foi uma época bacteriológica, com o seu fim a partir da descoberta do antibiótico.

A esta época, que o filósofo denominou de imunológica, se estabeleceu uma divisão nítida entre o dentro e o fora, amigo e inimigo. Acrescenta que o paradigma imunológico foi dominado pelo vocabulário da Guerra Fria: mesmo que o estranho não represente nenhum perigo, ele será eliminado devido a sua alteridade. Assim, o princípio da negatividade regeria a imunização, no sentido que a violência viria do outro, de um vírus a ser atacado.

Seguindo esse modelo de pensamento, numa sociedade de um excesso de igual, aparentemente sem fronteiras pelo alcance das redes sociais, a Covid-19 surge como um novo inimigo a ser derrotado, reestabelecendo uma reação imunitária, que se caracteriza por criar cercas, barreiras e muros.

Na nossa era virtual, que nos posiciona de forma mais passiva diante do bombardeamento de informações, o vírus surge como um golpe radical de realidade. O psicanalista Fabio Herrmann, em suas reflexões sobre a teoria da crença, escreve que quando a continuidade do cotidiano se quebra e somos capturados por questionamentos inesperados, rompe-se o campo das representações, daí vive-se um estado provisório de não-representabilidade.

Difícil nomear o que está se passando. Pouco se sabe. Em um primeiro momento parece que estamos vivendo aquilo que chamam de realidade paralela. De tão real parece ficção.

Todos nós no isolamento social, temos certa liberdade em flutuar entre os campos da ficção e da realidade, escapes até podem ser criados para as angústias geradas pela incerteza, pelo perigo da doença. Experiências sobre as mais variadas formas para atravessar as dores da crise, não cessam de serem relatadas. Ora perturbador, ora paralisante, tudo merece atenção e espaço de compartilhamento entre os grupos.

Em outro território estão os profissionais de saúde que vivem o excesso de realidade, de situações muitas vezes incontornáveis. O depoimento de um médico, da linha de frente ao combate da Covid-19, que infelizmente no Brasil ainda se encontra no seu início, demonstra o trágico da experiência: vive um pesadelo, quer acordar, quer sair e não consegue.

De acordo com um estudo publicado pela American Medical Association, os autores destacam fatores que geram sofrimento psíquico para os profissionais de saúde durante a pandemia, tais como, alto risco de exposição, medo de ser infectado, cargas extremas de trabalho, dilemas morais, exigência de práticas que diferem das que estão acostumados, sobrecarga de tarefas.

Entre as demandas, ainda está lidar com a família. Durante a internação cabe aos profissionais se isolarem com seus pacientes e barrar os familiares do contato com os parentes. Além da experiência de ver uma pessoa entrar no hospital e ao morrer é como se os corpos desaparecessem: caixão lacrado, sem nenhum ritual, sem despedidas, sem espaço de luto. Um processo que coisifica a vida.

A todos esses profissionais de saúde que se dirigem as várias plataformas de atendimento formadas no país, como uma grande demonstração de solidariedade. A Sociedade Brasileira de Psicanálise se une a esse movimento por meio do programa Rede SBPSP: Escuta psicanalítica aos profissionais de saúde, que oferece atendimentos online, gratuitos e pontuais.  O projeto se estende também aos membros das equipes, tais como vigias, motoristas, agentes de apoio, entre outros. A proposta é cuidar de quem está numa situação de alto risco, dar suporte emocional para quem cuida da população.

A escuta psicanalítica pode construir um momento de introspecção, de recuo da linha de frente, ao gerar uma conversa, que pode dar expressão à angústia subjacente a toda essa circunstância. E se a impotência atual é de todos nós, quem sabe se dê uma cura a dois.

Saindo do campo da urgência a que esses profissionais estão submetidos sem cessar, de alguma maneira que se recupere a possibilidade de sustentar a estranheza e dar brechas a busca de sentidos. E que tudo isso acabe logo.

 

Referências bibliográficas:

Han, Byung-Chul. (2015). Sociedade do Cansaço. (Trad. Enio Paulo Giachini) Petrópolis, RJ: Vozes.

Byung-Chul Han. La emergencia viral y el mundo de mañana, (Publicado no El País 22 de março de 2020) in Sopa de Wuhan – Pensamento Contemporâneo em Tempos de Pandemia. P. 97-111.

http://tiempodecrisis.org/wp-content/uploads/2020/03/Sopa-de-Wuhan-ASPO.pdf

Recuperado em 16 de abril de 2020.

Herrmann, F. Andaimes do Real: Psicanálise da crença. 1ªed. (2007). São Paulo, Casa do Psicólogo,

Downloaded From: https://jamanetwork.com/ on 04/12/2020

Understanding and Addressing Sources of Anxiety Among Health Care Professionals During the COVID-19 Pandemic

JAMA Published online April 7, 2020

Tait Shanafelt, Jonathan Ripp, Mickey Trockel

 

*Magda Guimarães Khouri é psicanalista, membro associado e diretora de Atendimento à Comunidade  da SBPSP. Organizadora com Bernardo Tanis do livro A Trama das Cidades, Ed. Casa do Psicólogo.



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