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Duzentos. Cem. Dez.

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Conta-se que em Setembro de 1822, com um grito dado à beira do riacho do Ipiranga –  Independência ou morte –, D. Pedro I, tornou o Brasil uma nação independente de Portugal. Conta-se que teria sido um gesto de resistência e esperança.

Esta foi a história escrita nos livros escolares. Hoje, sabemos que os acontecimentos não ocorreram exatamente dessa forma, sabemos que a liberdade se conquista em um longo processo contínuo e ininterrupto. No entanto, um grito, um gesto, um manifesto, podem dar o tom necessário para uma ruptura, um marco na história.  

Cem anos depois, em fevereiro de 1922, em São Paulo, dos ecos deste brado, a semana de 22, movimento de vanguarda artística, repensa que independência seria essa. E, alguns anos mais tarde, Oswald de Andrade, no manifesto antropofágico, clama:

Tupi, or not tupi that is the question!

Estes fatos, parte da história do Brasil, guardam semelhança com fatos da história de toda a América que chamamos Latina. Como cada país viveu seu canibalismo antropofágico para tornar seu o que herdaste de seus pais, como nos sugere Freud?

O que fizemos com nossa herança do colonizador? Como dela nos alimentamos, que sons, que gritos deglutimos e transformamos para criar uma língua própria? Como apreendemos a cultura das metrópoles, metabolizando-a com a história dos povos originários e dos povos negros escravizados? Aprendemos a não escravizar? Aprendemos a não nos escravizar?

Caliban, personagem shakespeariano, o nativo que não aprende a língua do seu senhor, mas inventa a partir dela um balbucio singular; um modo próprio de expressão. 

Calibán, Revista Latino Americana de Psicanálise faz deste personagem sua marca e com ela inicia seu percurso em seu primeiro número, Tradição/Invenção. Como reinventar nossa tradição? Que imago criamos? Que língua falamos? De que sons somos capazes de fazer nossa história?

Também nós, psicanalistas, temos uma história de formação semelhante: tomamos a psicanálise vinda da tradicional Europa e fazemos uma psicanálise que construímos, inventamos, dentro do nosso território, com nossas ideias, banhada em nossa cultura.

Das leituras que fazemos de Freud, Klein, Bion, Lacan, embalados pelo calor dos trópicos, nas montanhas andinas, nos pampas ou sob o milenar olhar que emana das pirâmides astecas, o que criamos a partir da tradição que nos alimenta?

Por estas linhas Calibán escreve a psicanálise. E escrever, nas palavras de Roland Barthes, tem função utópica. Quem escreve, diz ele, acredita sensato o desejo do impossível: apreender na escrita o real. Estamos no campo da resistência, da esperança para inscrever na história um movimento de decolonização.

Calibán é uma parte do muito que a psicanálise da América Latina tem a dizer. Um ainda novo instrumento deste dizer, um espaço de criação de laços em busca de fomentar um modo particular de transmitir a psicanálise e a cultura da América Latina.

A escrita é um convite à mestiçagem, hospitalidade que o autor oferece ao leitor para uma conversação criativa, forma de sustentar transformações, rupturas e enlaces. Nesta abertura para o diálogo entre autor e leitor, cria-se uma revista disposta ao enfrentamento que  os psicanalistas do nosso tempo vivemos diante de um mundo em movimento cada vez mais convulsivo. É do que trata o número mais recente: Como faremos para viver juntos?

Esta tem sido e continua sendo a busca de Calibán, RLP em seus 10 inventivos anos.   

Lançada em 2012 no Congresso da Fepal em São Paulo, idealizada por Leopoldo Nosek, presidente da entidade naquela ocasião, deu novo tom, novas cores e sons à Fepal, com a troca de ideias entre psicanalistas que mesmo próximos geograficamente, pouco se conheciam. Editada nos dois idiomas que nos representam, as comemorações de dez anos de existência da revista atravessam algumas cidades da América Latina. Em agosto, será a vez de São Paulo, berço da antropofagia.

Nos vinte e um números editados, a revista se constituiu também em um objeto colecionável não só pelos artigos, mas também pela arte que as imagens das obras que os artistas nos oferecem, escrevem em suas páginas.

Seguindo o pensamento freudiano de que o artista é um farol que nos guia na percepção do mundo, a comemoração dos dez anos de Calibán, Revista Latino Americana de Psicanálise convida para um encontro com dois artistas brasileiros.

Em 2012, quando Calibán, RLP era lançada, a Bienal de Artes de SP homenageava Bispo do Rosário e comemoravam-se noventa anos da semana de 22. Nas comemorações de uma década da revista, estes fatos se aliam novamente. 

O trabalho de Bispo do Rosário que faz de objetos do cotidiano, de restos descartados, ao recolhê-los e retecê-los, peças significativas, convoca a um paralelo com o trabalho do psicanalista, tema que foi objeto de Calibán em seu número Margens.

Inspirados na semana de 22 e no movimento antropofágico convidamos para uma performance musical de Arrigo Barnabé, artista brasileiro e compositor que a partir da música erudita e popular do Brasil cria seu próprio som em um trabalho autoral, em uma língua própria, desta vez musical.

A comemoração dos 10 anos da revista acontecerá em 20 de Agosto de 2022, sábado, em dois tempos.

Às 11:00 hs, no Centro Cultural Itaú, convidamos para uma visita à exposição de Artur Bispo do Rosário, seguida de um bate-papo com o historiador de arte e curador Gianfranco Hannud e coordenação participativa de Silvana Rea. Evento gratuito. Inscreva-se clicando AQUI

Às 20:30 hs, com uma performance musical de Arrigo Barnabé e Paulo Braga em uma suíte a 4 mãos, e com um banquete antropofágico, na Casa de Francisca, no centro histórico da cidade. Inscreva-se clicando AQUI.

Que em 2022, ao comemorar os 10 anos de Calibán, RLP possamos também, continuar a reinventar nossa herança escrita, falada, musicada e, duzentos anos depois, renovar o grito do Ipiranga pela música de Arrigo Barnabé.

 

Raya Angel Zonana é psiquiatra (FMUSP), membro efetivo e docente da SBPSP e editora chefe de Calibán, RLP, de 2017 a 2022. 

“As opiniões dos textos publicados no Blog da SBPSP são de responsabilidade exclusiva dos autores.” 



Comentários

One reply on “Duzentos. Cem. Dez.”

Luiz Tadeu Pessutto disse:

Parabéns Raya. Muito bom o texto

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