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Desejo de mundo

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Certa vez, em uma das suas apresentações1, Fabio Herrmann, ao falar de psicanálise, cultura e sociedade, disse que o mundo não cabe no divã e por ser redondo cairia, pois, como sabemos, rola, além do que o divã está dentro do mundo. Não seria possível fazer essa operação! A psique coletiva não é uma psique individual ampliada, nem o contrário, pois, na concepção do autor, a psique é o sentido humano.

Herrmann procurou recuperar aquilo que constituiu o nosso patrimônio original na obra de Freud: um olhar clínico sobre o mundo. Aí está a raiz do que se denomina clínica extensa. A direção é pensar a psicanálise como ciência geral da psique, não exclusiva da clínica padrão dos consultórios. Psicanálise aqui entendida, primordialmente, como um método de conhecimento da psique, baseado no fazer interpretativo.

O método “semeador de inconscientes põe à mostra o que está oculto em qualquer condição humana”2. Como escreveu Hermann: “a técnica não é um desdobramento do setting ou uma receita teórica do que dizer. É a escuta poética, sem melodrama, sem alcaçuz. Deixar que surja o sentido, para lá do alcance estreito da significação, tomá-lo em consideração e aguentar as consequências. Principalmente, não tomar as palavras pelo manual de interpretação, esperando delas um significado literal que não podem ter nas circunstâncias”3.

Leopold Nosek considera que a escuta psicanalítica está dentro do analista, independentemente do lugar, e diz ser um dos poucos trabalhos existentes que prescinde da tecnologia, até da elétrica: se o mundo parar e ficar no escuro, bastam duas subjetividades e uma vela! A imagem criada por Nosek traduz a ideia potente do fazer psicanalítico proposta por André Green sobre o enquadre interno do psicanalista, que é, em última instância, o próprio analista em sua função de guardião do tratamento do paciente.

A experiência da própria análise é fundamental “como propiciadora de uma escuta íntima da própria turbulência pulsional que nos habita, pois aí também reside nossa singularidade e vitalidade”4. O que sustentaria a experiência psicanalítica é a possibilidade de reconhecimento do estrangeiro em si mesmo e no outro.

Na esteira da clínica extensa, está título de uma das mesas do congresso brasileiro realizado em Belo Horizonte (2019): “O psicanalista fora de casa”. Na largada da discussão, Oswaldo Ferreira Leite lançou uma pergunta: “haveria algum sentido em o psicanalista permanecer dentro de casa?”. Acreditamos ser o “fora de casa”, nesse constante movimento de reinventar a psicanálise, um caminho que sempre enriquece a formação de novos analistas, na sua prática e reflexão clínico-teóricas. Dessa forma, cabe a nós o compromisso de investigar as marcas na subjetividade do abismo social em que vivemos, pois a clínica ao se deixar impregnar da história de uma sociedade nos conecta às marcas inconscientes.

Ações institucionais

Inspirados nos diversos autores e no diálogo construído, no decorrer de todos esses anos, o desejo de mundo foi levando a diretoria de atendimento à comunidade (DAC) da SBPSP, desde as diretorias de Oswaldo Ferreira Leite e Elizabeth Coimbra, a colocar o pensamento em ação, a se deixar penetrar pelas questões da cidade e a se relacionar diretamente com territórios diversificados. O programa aqui descrito integrou o projeto Psicanálise e suas Clínicas, durante a presidência de Bernardo Tanis5

Uma das frentes da DAC tem dirigido o seu trabalho aos agentes multiplicadores de diversos setores da cidade. A intensa sobrecarga emocional e o grande sofrimento psíquico dos trabalhadores, que estão em contato direto com situações de vida muito precárias, têm sido a principal demanda das instituições. Por meio de grupos de reflexão, a equipe tem condições de fazer circular a palavra e ser acolhida em suas angústias. 

Os efeitos produzidos por essa escuta acabaram por se propagar, também, na população assistida por tais profissionais.

No período de 2017 a 2020, acompanhamos as seguintes ações institucionais no Setor de Parcerias e Convênios, coordenado por Silvia Bracco: 1. Guarda Civil Metropolitana da cidade de São Paulo; 2. Instituto Anchieta Grajaú; 3. Centro Estadual de Educação Tecnológica Paula Souza – ETECS e FATECS; 4. Tribunal de Justiça/ SP e CEVAT (Centro de Visitação Assistida); 5. Lar das Crianças (CIP); 6. UNAS – União de Núcleo e Associação de Moradores de Heliópolis e Região; 7. Defensoria Pública do Estado de São Paulo – Santos/SP; 8. Grupo: Hora da conversa: EJA – educação de jovens e adultos e Cursos Técnicos do colégio Santa Cruz – S. Paulo; 9. Instituto Criar de TV, Cinema e Novas Mídias; 10. ASA – Associação Santo Agostinho.

O trabalho com algumas dessas instituições permanece até hoje, coordenado pela atual gestão da DAC.

Ato analítico

Entre as várias experiências surpreendentes que as pessoas que atendem a população vulnerável vivem, elegi, para exemplificar, uma cena da parceria com a UNAS, do Centro de Criança e Adolescentes da região, descrita pelos colegas Eliana Caligiuri e Luiz Moreno Guimarães Reino.

No grupo de educadores a gestora Marilene Rosa da Conceição relatou que, diante de uma aluna doente, se viu aflita para levá-la ao médico. Quando se dirigiu à criança dizendo que iria conversar com a mãe, ela respondeu: “minha mãe está na cama, fica no sofá, ela é drogada”.

A gestora insistiu sobre a necessidade da autorização e foi à casa da menina para dizer que ela estava precisando de cuidados, pedindo sua licença para conduzi-la ao médico. Feito o pedido, voltou no dia seguinte e encontrou a mãe de banho tomado, arrumada para irem juntas cuidar da filha. Para a menina, abriu-se um novo cenário. A gestora reconheceu o lugar da mãe, não ocupou o seu papel, apenas mostrou a necessidade dos cuidados, sem sermão. Sustentou a própria impotência e a do outro e, dessa forma, como um dos melhores exemplos de ato analítico, tocou a mãe a tal ponto que posteriormente esta aceitou se submeter a um tratamento num serviço de saúde mental da cidade.

Os psicanalistas no grupo apontaram a capacidade da profissional, a força do seu ato, que, ao suspender o juízo e respeitar o lugar da mãe, abriu o caminho para se concentrar naquilo que tinha que ser feito: tratar da criança e, por sua vez, quiçá pelos tortuosos caminhos da transferência, também alcançou a mãe. Mostraram o que já estava lá, sem forçar sentidos. É um momento de recuo da urgência do cotidiano, pois os educadores se sentem muito cansados emocionalmente, colados nas histórias das crianças, que também fazem lembrar as suas próprias realidades.

Os educadores são pressionados diariamente a dar conta do abandono em que se encontra a comunidade em relação ao sistema de saúde, à proteção da lei, às organizações familiares. Para suportar paixões violentas ou mergulhar na biografia de pessoas silenciadas pela dor, além de plasticidade psíquica, os cuidadores exercitam uma espécie de atletismo afetivo.6

Como escreveu Nosek, nesse contexto, não seria o lugar para o psicanalista dar respostas terapêuticas: o central é não se vincular à ação. “Ele está preparado para fazer formulações diagnósticas. Não resolve equações, colabora para montá-las. Sabemos que isso resulta por vias secundárias. Afinal, é mais difícil resolver uma equação ou encontrar constantes e o modo de construí-la? Ou seja, trata-se de encontrar trajetos expressivos e representativos para que a atividade do pensar evolua. Trata-se de sonhar.7

Colchão para o rêverie

Nesta mesma linha de destacar como o encontro do grupo abre espaço para a dimensão simbólica do acontecimento, concordamos com Marcelo Viñar, que acredita que a nossa contribuição está, na medida do possível, em manter o conflito e mediar a descarga em ato. Sem seguir um caminho de desresponsabilizar o sujeito, mas diante dos acontecimentos violentos, os protagonistas possam sustentar o conflito e manter suspensa a sanção punitiva imediata.

“Essa suspensão criaria um ‘colchão’, um espaço de rêverie, ou melhor, espaços lúdicos nos espaços concretos, onde a catarse da violência humana poderia ser manejável, e onde a brutalidade pode- ria ser sancionada ou questionada e, deste modo, distendida.8” Uma das grandes potências da psicanálise é transformar uma conversa comum em um discurso metaforizado, sempre como guardiã da liberdade do sujeito na sua forma mais radical.

Narrativa: recriando mundos

Somos convocados a transitar em diferentes settings, tanto na clínica particular quanto no trabalho clínico em territórios expandidos, tornando-se muito atual a observação de Melanie Farkas, ao escrever que: “são situações e meios que extrapolam a condição ideal de privacidade e neutralidade da sessão de análise, no entanto, não impedem o profissional de psicanálise com proveito a regra de ouro da associação livre e da atenção flutuante para contribuir na reconstrução de enredos”9.

O ato analítico permanece com sua potência ao resgatar, por meio da narrativa, as redes associativas pelo trabalho onírico da vigília.

Como descrevem Bracco e Cintra10 sobre suas experiências no Ateliê Acaia11: “as crianças que frequentavam o Acaia e outras instituições acabavam estigmatizadas como ‘meninos cheios de querer’ e isso atrapalhava o bom andamento das atividades. Vitalidade, desejo de mundo vinham corromper a ordem estabelecida”.

O espaço da psicanálise sempre foi encontrado nos interstícios, nas fendas do muro, e ao devolver a força poética à palavra, o sujeito tem a chance de encontrar novas formas para enfrentar o mundo.

NOTAS

1. Conferência realizada por Fabio Herrmann: O poder não corrompe, revela, no dia 7/10/2005, da Jornada de preparação ao XX Congresso Brasileiro de Psicanálise, atividade da Diretoria Científica da SBPSP.

2. Barone, L. M. (org.). O psicanalista: hoje e amanhã. Encontro da Teoria dos Campos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2002. p. 291.

3. Hermann, F. Sobre os fundamentos da Psicanálise: quatro cursos e um preâmbulo. São Paulo: Editora Blucher, 2017.

4. Vetorazzo, H. Por uma psicanálise viva. Comissão de Publicação Departamento Formação em Psicanálise, organização. São Paulo: Primaveral Editorial, 2013. p. 75.

5. Tanis, B. Conferência apresentada no I Simpósio Bienal da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), Psicanálise em Movimento, agosto 2018. Disponível: http://www.bivipsi. org/wp-content/uploads/por- 2018_94-104.pdf.

6. Lancetti, A. (2015). A contrafissura e a plasticidade psíquica. Hucitec. A contrafissura é um sintoma social contemporâneo que opera na mídia, na política, na clínica – na subjetividade contemporânea. Plasticidade psíquica refere-se às mutações subjetivas dos cuidadores que protagonizam experiências promissoras e as transformações que ocorrem nos usuários da Rede de Atenção Psicossocial Brasileira.

7. Pastore, J.; Soares, S. (org.). O psicanalista na comunidade. São Paulo: SBPSP, 2012. p. 100.

8. Viñar, M. (2000). Entrevista: Uma utopia sem lugar de chegada. Mal-estar na atualidade. Percurso 25. Ano XIII.

9. Pastore, J.; Soares, S. (org.). O psicanalista na comunidade. São Paulo: SBPSP, 2012. p. 50.

10. Bracco, S.; Cintra, A.C. (2018). Uma clínica dos cuidados. Trabalho apresentado no Congresso da FEPAL, Lima.

11. O Ateliê Acaia, desde fins de 1997, ocupa-se da população que vive em duas favelas, do “Nove” e da “Linha”, e em um conjunto habitacional de baixa renda no entorno do Ceagesp, que é o grande centro de abastecimento de frutas e verduras de São Paulo. São famílias vivendo em condições de alta vulnerabilidade social, pouco estruturadas, onde 60% das crianças têm pais, irmãos ou parentes próximos no sistema prisional ou ligados ao tráfico de drogas. Durante 18 anos ofereceram oficinas apenas no contraturno escolar, e no início de 2017 começaram a funcionar como escola.

  

Magda Khouri é membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Foi diretora de Atendimento à Comunidade da SBPSP (2017-2020). Organizadora, com Bernardo Tanis, do livro A psicanálise nas tramas da cidade.

Imagem: São Paulo sob as nuvens, fotografia de Cintia Buschinelli 

As opiniões dos textos publicados no Blog da SBPSP são de responsabilidade exclusiva dos autores.   



Comentários

2 replies on “Desejo de mundo”

Beth Antonelli disse:

Magda, seu texto é uma panorâmica de muitos anos de trabalhos de muitas pessoas e fruto de muita elaboração sua.Só posso elogiar e agradecer!!Muito necessário e importante! Beth Antonelli

Magda Khouri disse:

Obrigada Beth! um trabalho para, cada vez mais, fazer parte de nossos projetos.

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