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Criatividade, uma visão psicanalítica

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ALGUMAS CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS

O PROCESSO CRIATIVO ATÉ AS CONTRIBUIÇÕES DE FREUD era objeto de admiração e espanto, era atribuído à loucura, ao destino, ao acaso, à providência divina. Não era estudado, por se entender que o homem, animal racional, pensa segundo as leis da lógica e da matemática. Até esta época o “criador” era quem manejasse perfeitamente as técnicas da dedução. O homem não pertencia à ordem natural das coisas – apenas seus processos corpóreos seguiam as leis naturais – mas não sua razão e vontade. Assim, só Deus poderia criar, o homem poderia apenas descobrir.

Com a descoberta do inconsciente Freud demostrou a fonte criativa do ser humano, a obra do gênio passou a ser vista como um grau diferente “daquilo que dormia ou germinava” na mente do homem comum; a criatividade não estava mais limitada ao artista. Não sendo mais definida a partir de um peculiar tipo de produto artístico passou a ser considerada uma capacidade que potencialmente todos podem ter.

Uma vez admitida a fonte criativa do inconsciente e aceitas as condições originais de cada indivíduo, o campo de pesquisa sobre a criatividade ampliou-se. Os alunos de Freud, para citar Otto Rank e Karl Abraham, tentaram dar respostas a questões que o próprio Freud considerava além das possibilidades; o impulso criativo, o talento, o gênio, o trabalho do artista, a avaliação da obra de arte passaram a ser foco de atenção dos seguidores.

No início, os trabalhos pretendiam provar a validade das descobertas freudianas sobre o inconsciente e mostravam que os artistas expressam em suas obras conflitos infantis profundos. A compreensão analítica adquirida através dos sonhos levou à descoberta de fantasias edipianas reprimidas e sua expressão estética mascarada na arte. Otto Rank demonstrou que os temas da literatura universal e dos contos de fada, das brincadeiras e outros produtos da imaginação são variações de poucos e fundamentais motivos entre os quais o incesto e os derivados do complexo de Édipo. K. Abraham estabeleceu uma relação mais estreita entre sonho e mito. Ernest Jones, no ensaio sobre o simbolismo (1929), escreveu uma história da arte em trinta e cinco páginas, assim afirmou Gombrich. Inúmeros foram os trabalhos sobre o processo criativo na obra de arte sua função para o artista e a relação entre o artista e o público. Ernst Kris sistematizou os vários momentos do processo criativo, as fases de inspiração e de elaboração, procurando estabelecer diferenças entre a expressão artística da personalidade normal e do psicótico.

Melanie Klein (1957) mostrou a tendência a reparar e recriar dentro e fora de si os objetos de amor, ameaçados de destruição em fantasia, colocando a origem da criatividade na posição depressiva e na culpa.

Hanna Segal (1964), alinhada com Klein, afirmou que o desejo de criar está enraizado na posição depressiva e a capacidade criativa depende de sua superação. Cada criação é uma recriação de um objeto amado, que foi perdido e estragado num mundo interno com um self despedaçado. E a obra de arte seria, para o artista, a forma mais satisfatória de aliviar o remorso e o desespero que nascem da posição depressiva e de reconstruir seus objetos destruídos. Reconhecer e expressar as fantasias e ansiedades depressivas é um trabalho semelhante à elaboração do luto. O artista recriaria internamente um mundo harmônico que é projetado em sua obra de arte.

Marion Milner reconhece o significado inconsciente da atividade artística, mas acredita que a recriação seja uma função secundária da arte. A função primária é a de criar  objetos (em sentido psicanalítico): “criar o que nunca existiu, usando uma nova capacidade de percepção”.


UMA VISÃO ATUAL DA CRIATIVIDADE

Como toda ciência, a psicanálise está em contínua evolução e tem avançado na compreensão dos fenômenos ligados à simbolização, aos processos oníricos e ao pensar. Esse avanço deve-se à mudança da concepção de modelo de mente, que passou de hidrostático (Freud) a teológico (Klein) para se tornar epistemológico (Bion). O distanciamento dos modelos de mente da ciência tradicional (positivista) possibilitou o estudo da “passagem misteriosa” da experiência emocional à sua representação, que a ciência psicanalítica tem dividido entre outros com a arte, a filosofia e a literatura.

BION ESTUDOU A “PASSAGEM MISTERIOSA” QUE VAI DA EXPERIÊNCIA EMOCIONAL À SUA REPRESENTAÇÃO EM IMAGENS ONÍRICAS e formulou a teoria da função alfa (“Uma Teoria do Pensar”, 1962), segundo a qual, a passagem ocorre desta forma: o sujeito, ao ter uma experiência sensorial e emocional, precisa dar-lhe significado e representação para que sua mente se torne capaz de ter pensamentos e de crescer na capacidade de pensar. Para que este processo aconteça, o sujeito depende de objetos internos que o ajudem nessa função de significar e representar. No início da vida é a mãe que exerce essa função (a mãe como um objeto não apenas de cuidados e nutrição, mas como objeto pensante). A criatura vai internalizando esse “objeto” como um modelo de pensar e a ele recorre, sempre que necessário, a cada nova experiência emocional. Assim são gerados novos pensamentos, novas “unidades simbólicas”.

A VIDA ONÍRICA É UMA ATIVIDADE PENSANTE QUE BUSCA DAR SENTIDO AO QUE VIVEMOS, DESDE QUE SEJAM OFERECIDAS ALGUMAS CONDIÇÕES. É o lugar onde nos recolhemos, para dar toda atenção ao mundo interno, às nossas relações íntimas e é onde as experiências emocionais são compreendidas, e os significados alcançados são representados nos sonhos noturnos, nas verbalizações, na música, na pintura e na poesia.

PARA A PSICANÁLISE ATUAL, TODA FUNÇÃO CRIADORA CONSIDERADA ARTÍSTICA OU CIENTÍFICA DEPENDE DA CRIATIVIDADE DOS OBJETOS DO MUNDO INTERNO DO INDIVÍDUO E DAS RELAÇÕES ENTRE O SELF E SEUS OBJETOS INTERNOS (divindades, Meltzer 1992). A mente é entendida como espaços nos quais as experiências emocionais ocorrem continuamente e necessitam do reconhecimento em nível simbólico para que possam ser pensadas. Nessa perspectiva, a poesia, por exemplo, surge da simbolização nesses espaços e o poeta pode estar avançando na descoberta da própria mente a cada criação poética.

Os elementos precursores simbólicos originados das transformações nesses espaços do mundo interno do indivíduo são imagens principalmente visuais e auditivas. Para serem comunicadas, precisam ser representadas, e é deste processo que surgem os  símbolos. Há um processo de produção contínuo inconsciente, que não é interrompido pelas experiências diárias conscientes, CHAMADO DE PROCESSO ONÍRICO. De dia,  manifesta-se através de flashes, imagens visuais inexplicáveis, repentinas, não relacionadas aparentemente com a conversação ou a situação do momento. São “pensamentos incipientes” que denotam uma atividade de pensar, com a finalidade de alcançar um significado da experiência emocional em curso. Em geral, somos incapazes de compreender o significado dessa linguagem. Além disso, a transformação do pensamento nascente em qualquer linguagem sofre várias distorções. Temos que levar em conta também a eterna limitação da linguagem verbal pela representação nela implicada, que Ludwig Wittgenstein (1958) denomina “o que não se pode falar, deve-se calar”, possível alusão à necessidade da imagem, da cena, da vivência, da linguagem pré-verbal para comunicar o todo da experiência.

RELAÇÃO ENTRE O PROCESSO ONÍRICO E A OBRA DE ARTE

Voltamos à questão: que relação haveria entre processo onírico e o processo criador, ou melhor, que relação haveria entre o processo  onírico e a produção artística. Para tal cito o poeta PASCOLI (1855-1912) que descreve a criação poética como sendo um componente irracional da alma, um lampejo, uma iluminação que de improviso penetra na obscuridade da psique, ligado ao entusiasmo, assim chamado por Platão nos “Diálogos”, onde os poetas cantam não segundo Sofia que é um impulso racional, mas sim seguindo o “ENTUSIASMOS’, que seria um componente irracional da alma humana*.

Este componente irracional é o que dá o impulso poético, e está ligado à dimensão lúdica da alma que regula o brincar da criança. A poesia é um ato criativo, emocional, que Pascoli define como um Meteoro Espiritual ou Psíquico; é algo que aparece improvisamente e explode como uma faísca. E está associado ao Assombro por uma emoção presente que faz surgir uma memória. A poesia nasce  do espanto, do assombro, da surpresa e da memória, nasce da nostalgia e da saudade (rimpianto) que são componentes fundamentais para a criação, segundo Pascoli. O poeta verdadeiro escuta o que a criança fala em seu interior, e esta seria a poesia pura e não a poesia carregando um “estorvo” cultural acadêmico que obscurece o ato poético original.

A poesia épica é cantada pelo Aedo, o poeta cego (ED significa VER em grego) pois seus olhos se estragaram ao ver o que está dentro da psique. Homero é o arquétipo dos poetas cegos que consegue ver com os olhos da alma e consegue ouvir a voz da criança. A poesia épica é uma poesia de tipo onírico porque quando a mente se distancia da realidade externa afloram conexões na mente entre imagens que aparentemente não tem conexão lógica e que se conectam por um fio analógico. Este poeta que se entrega ao sonho, à visão, é o poeta viajante ultra mundo, é o viajante por meio da alma, é Dante. A Divina Comédia é vista como um grande sonho no qual o poeta está perdido na selva do pecado, na selva caótica da própria psique e tenta encontrar o caminho que o leva para a verdade.

O poeta Pascoli usa de vivificação em sua criação, a imagem que aflora de seu psiquismo é vivificada como nestes dois poemas “IL LAMPO E IL TUONO” em que o relâmpago da visão e a tempestade da inspiração sucede a uma catarse em que o poeta concebeu ..CRIOU..

*Este texto sobre Pascoli é fruto de uma entrevista a Elena Salibra, em junho de 1999, Pisa.

Vamos aos poemas:

IL LAMPO

Il cielo e terra si mostro qual era/ la terra ansante, lívida in sussulto/ il cielo ingombro, tragico disfatto/ bianca, bianca nel tacito tumulto/ una casa apparì, sparì d’un tratto/ come un’occhio che largo e esterrafatto/ s’aprí, si chiuse nella notte nera.

IL TUONO

E nella notte nera come il nulla/ a un tratto, col fragor d’arduo dirupo che frana/ il tuono rimbombò di schianto/ rimbombò, rimbalzò, arrotolò cupo/ e tacque/ e poi rimareggio l’infranto/ e poi vaní/ soave allora un canto s’udì di madre/ e il moto di una culla.

Para mim estes dois poemas mostram a beleza da figura combinada em sua criação!!!

Traduzindo para o português seria O RELAMPAGO E O TROVÃO.

O Relâmpago

O céu e a terra se mostraram qual ‘era/ a terra ofegante, lívida, trêmula/ o céu atulhado, trágico desfeito/ branca, branca no tácito tumulto/ uma casa surgiu, sumiu de repente/ como um olho amplo e espantado/ se abriu, se fechou na noite escura.

O Trovão

E na noite escura como o nada/ de repente com o fragor do árduo íngreme que desaba/ o trovão retumbou num estrondo/ retumbou, ricocheteou, enrodilhou quieto/ e silenciou/ e redondeou o estalo/ e então sumiu/ suave então um canto/ se ouviu de uma mãe/ e o moto de um berço.

CONTINUANDO A PENSAR na produção artística poética conjecturamos que o poeta, ao viver experiências sensoriais e emocionais, pode elaborá-las em formas simbólicas poéticas.

Partindo de um estado de mente onírico que produz significados, o poeta, diferentemente do homem comum, é capaz de dar-lhes FORMAS que resultam em linguagem reconhecida como poética.  

Vamos ilustrar tal hipótese com poemas de Eugenio Montale (1896-1981):

OUTRO EXEMPLO DE ESTADO DE MENTE ONÍRICO* 

CRIANDO UM POEMA:  

Cigola la carrucola del pozzo 

“Cigola la carrucola del pozzo,
l’acqua sale alla luce e vi si fonde.
Trema un ricordo nel ricolmo secchio,
nel puro cerchio un’immagine ride.
Accosto il volto a evanescenti labbri:
si deforma il passato, si fa vecchio,
appartiene ad un altro….
                                  Ah che giá stride
la ruota, ti ridona all’atro fondo,
visione, una distanza ci divide.”

*Estado de mente onírico é o nome que a autora propõe para uma determinada configuração mental durante a qual o indivíduo está elaborando uma vivência emocional que está sendo transformada em formas simbólicas, e no caso do artista, em poema.

TRADUÇÃO

Rilha a roldana do poço

“Rilha a roldana do poço,
a água sobe à luz e aí se funde.
Treme um recordo no transbordante balde,
no puro círculo uma imagem ri.
Encosto o rosto a evanescentes lábios:
deforma-se o passado, faz-se velho,
pertence a outrem…
                             Ah, o chiado da roda
te devolve ao negro fundo,
visão, uma distância nos separa.”

Nesse poema há o movimento de separação e reencontro através de uma imagem projetada “trema un ricordo nel ricolmo secchio(treme uma lembrança no transbordante balde), uma imagem que ri e que por um momento é realidade a ponto de o poeta encostar “o rosto a evanescentes lábios“. A partir daí, a alucinação, o louco sonho de trazer à presença o que está ausente por uma projeção de sua memória “no puro círculo uma imagem ri”, se desfaz. O movimento da roldana que vai ao fundo e retorna, levando o balde vazio e trazendo-o à luz cheio é, sem dúvida, uma configuração que o poeta usa como semelhança de um ir e vir, de presença e ausência. Sobre este movimento ele projeta a imagem de um objeto ausente que “por um momento” está na realidade externa.

Em “Além do Princípio do Prazer” (1920), Freud observa um menino de 18 meses que brinca de jogar um carretel de linha para baixo de um móvel exclamando “Fort!” (Fora!) e puxando-o de volta exclama “Da” (Aqui). Freud conclui que o menino estava lidando com a ausência da mãe e, ao afastar e reaver o carretel, ele dominava a ação de separação e reencontro. Brincando desse modo, podia aguardar o retorno da mãe, evitando uma insuportável ansiedade de separação.

Não há nessa poesia de Montale o nível lúdico da criança que brinca de ter controle do ir embora e do voltar, mas uma momentânea alucinação ou imagem onírica – fruto do imenso desejo do reencontro do objeto. A alucinação se desfaz com o gesto de aproximação, com um novo movimento da roldana (Ah, o chiado da roda) que devolve o balde ao negro fundo, metáfora da volta ao inconsciente da imagem onírica, fruto do desejo; a consciência do poeta adverte-o de que ocorreu uma visão, pois há uma distância entre “eu” e “tu”. O lúdico e o criativo se revelam na realização desse poema, que nos parece uma criação diante da angústia de separação e da passagem do tempo.

Concluindo nossa conjectura, a inspiração poética corresponderia a um processo complexo que se inicia com uma experiência sensorial e emocionai que, ao sofrer transformação simbólica surge sob forma de um estado de mente poético. Num segundo tempo, acontece a elaboração do produto derivado de tal estado de mente em objeto artístico, em poema. No homem comum, o processo se inicia com uma experiência sensorial e emocional que precisa ser elaborada em símbolos, fazendo surgir estados de mente criativos no sentido lato da criatividade primária, que são os símbolos capazes de dar significado a experiência vivida e alimentam a capacidade de pensar. Diferente das do homem comum, as criações do poeta implicam um componente estético e uma universalidade que as tornam objetos artísticos. Do ponto de vista psicanalítico a criação poética ou qualquer expressão artística não é considerada invenção, não é um produto apenas da imaginação, mas é fruto do interjogo do evento externo com a realidade psíquica, fenômeno este, em parte inconsciente, e que o talento pode trazer à consciência em forma de objeto artístico.

Marisa Pelella Mélega é médica, psicanalista e docente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo – SBPSP. Psicanalista pela IPA. Publicações recentes: Símbolos em Psicanálise, Psicanálise Clínica, Pós-autismo: uma narrativa psicanalitica com as supervisões de Donald Meltzer. 

Imagem: Shutterstock

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