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Considerações sobre “Aberfan” e as catástrofes sociais em tempos de Covid-19

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Episódio (T3, E3) do seriado “The Crown”[1]

 *Bernardo Tanis

Em 1966, o deslizamento de um aterro de uma mina de carvão causou uma tragédia de proporções gigantescas na vila de Aberfan, no sul do país de Gales, resultando em 140 mortes, das quais 116 eram crianças que estavam na escola Pantglas, a um dia de iniciarem o período de férias.

O episódio a que assistimos retrata a escola no dia que antecede a avalanche de 110.000 metros cúbicos de rejeitos que arrombou suas paredes e soterrou as crianças e professores. Na sequência, vemos imagens assombrosas de pais e familiares buscando nos escombros os sobreviventes. Logo vem o pronunciamento de dirigentes do National Coal Board (NCB), corporação estatutária criada para administrar a indústria nacional de mineração de carvão no Reino Unido, tentando se eximir da responsabilidade pela tragédia, atribuída às “intensas chuvas”. E, então, escutamos falas de famílias de vítimas denunciando que há anos alertavam as autoridades sobre o risco do desastre. Depois disso, vieram os posicionamentos e ações do primeiro ministro do Reino Unido, Wilson, e da rainha Elizabeth, sobre os quais falaremos mais adiante.

Em 2015, vivemos no Brasil uma tragédia semelhante, de ainda maior dimensão, com o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana. Considerado o desastre industrial  que causou maior impacto ambiental da história brasileira e o maior do mundo envolvendo barragens de rejeitos, teve um volume total despejado de 62 milhões de metros cúbicos e deixou 19 mortos. Análises realizadas em Governador Valadares encontraram na massa de lama quantidades superiores aos valores aceitáveis de metais pesados como arsênio, chumbo e mercúrio. Esses metais, possivelmente utilizados em garimpos ilegais ao longo do rio Gualaxo do Norte, foram carregados pela torrente de lama.

O Brasil viu também, em 2019, o rompimento de uma barragem em Brumadinho, que resultou em um desastre de grandes proporções no âmbito industrial, humanitário e ambiental, com 259 mortos e 11 desaparecidos. Foi considerado o segundo maior desastre industrial do século e o maior acidente de trabalho do Brasil.

Mas não vamos hoje falar de todo o show de horrores destas terríveis e abomináveis catástrofes nem é o objetivo desse comentário tratar do comportamento das autoridades no nosso país. Qualquer um de nós pode dar um Google e saber mais sobre elas.  Farei aqui algumas considerações desde a perspectiva psicanalítica, para a qual fui convidado a falar, para podermos ampliá-las no debate.

Os vértices de análise e comentários que esses desastres despertam são vários. Humanitários, ecológicos, psicológicos. No entanto, como disse no início do episódio o primeiro ministro Wilson, devemos lembrar que sem nenhuma dúvida “Tudo é político”. Isso significa que, na esfera da humanidade, nada escapa ao modo como os homens organizam a vida social e econômica das nações. Quando e por que certas áreas e populações são objeto de descuido ou negligência. Muitos governantes preferem naturalizar as catástrofes de modo a não assumir responsabilidades que, como estados e municípios, têm para com os seus habitantes.

Mas antes de adentrar no assunto das atitudes dos líderes políticos perante o desastre, quero falar um pouco do efeito do desastre, do trauma subjetivo e social que ele produz, pois acredito que apenas se compreendermos algo da catástrofe humanitária poderemos vislumbrar o que possa ser um mínimo sentido reparatório. Chamamos de reparação em psicanálise o ato ou o pensamento que visa a reparar um dano real o fantasiado.

Frente a essas catástrofes ecológicas e humanitárias, a pergunta é: há reparação, há perdão, há justiça possível?

Há várias definições para trauma, mas todas concordam que se trata do efeito da incidência de um acontecimento singular (individual ou coletivo) que impacta a subjetividade a ponto de desestruturar o psiquismo, de questionar os alicerces da subjetividade que se constrói na confiança no outro para mitigar o desamparo constitucional do ser humano.

Perante a fragilidade do bebê humano, o outro significativo provê as condições de um vínculo que não apenas ajuda a subsistência biológica, a conservação da vida, mas cria a base da esperança de poder ser acolhido e protegido no mundo, assim como as condições de desenvolver um ego capaz de utilizar os próprios recursos internos no futuro.

Nós, seres humanos, criamos vínculos afetivos, sociais, parcerias de trabalho. Fazemos parte de estruturas mais e mais complexas para existir enquanto grupo na pólis, no mundo social e político. O Estado moderno, além de figura de autoridade, tem como função auxiliar na regulação da vida coletiva, na construção de normas e obrigações, no sentido de zelar pelos seus habitantes, pelo povo e pela nação. Não se trata de bravatas ou sofismas, mas de atos concretos que garantam o amparo social. Assim como o fazem nossos progenitores.

O que esses desastres evidenciam é a falência do Estado e a manifestação de um governo submetido a interesses de determinados grupos, que não se importa em colocar o planeta ou a população em condição de risco. Seja no País de Gales, em Mariana, Brumadinho ou tantas outras regiões do planeta. Essa lógica predatória dizima populações, recursos naturais e gera ainda a desesperança e o trauma social, e com eles o ódio, o ressentimento, a violência.

Como seguir em frente quando a realidade se mostra tão avassaladora? Como se sobrepor ao sentimento de impotência frente ao desamparo? Como poder elaborar o luto quando o ódio e o ressentimento são o oxigênio que alimenta a chama viva da perda?

Nesses momentos de trauma social, a sociedade percebe o que muitas vezes prefere silenciar: a falta das mínimas condições de uma vida digna para grande parte da população, privada de moradia, saneamento, segurança e renda.

Caros ouvintes, não podemos confundir o traumático com o acontecimento. Quero frisar este ponto. O acontecimento é da ordem do factual. O trauma é da ordem do desmantelamento das referências subjetivas que nos conferem nossa identidade, nossa noção de tempo e continuidade, nossos sonhos e projetos. É como se suspendesse a noção de continuidade da vida: parece que tudo congela ou explode em inúmeros fragmentos. Demanda recompor um tecido mental esgarçado, recuperar a confiança, a vontade de viver e de produzir.

Como recompor esses vínculos e ligações, intrapsiquicamente e com o mundo? Essa é a tarefa que temos de enfrentar.

Na psicanálise, a negação dos fatos, recurso empregado frequentemente por líderes autoritários, é conhecida como o mecanismo psíquico da desmentida. Ao seu lado, a hipocrisia e o cinismo do discurso dissociado da ação muitas vezes são encarnados pelas autoridades.

Já o ódio e o ressentimento, experimentados por aqueles que foram afetados, impedem a superação de traumas coletivos porque também funcionam como formas de negação. O luto só começa após o reconhecimento da situação por todos os envolvidos. Significa que é possível seguir adiante, reconhecendo a perda e a dor. Não é possível elaborar o luto enquanto há um apego a essas paixões negativas.

Pois bem, se me alonguei neste ponto é porque penso que os líderes de uma nação, embora nem sempre tenhamos líderes que mereçam ser assim chamados, têm o dever de compreender não apenas o dano material, mas também o dano subjetivo dessas catástrofes sociais, ecológicas e humanitárias. Os líderes de uma nação não podem apenas fazer contas nem podem olhar a realidade como pura estatística. Os líderes de uma nação precisam, quando dispõem de um mínimo de empatia pela dor do outro, agir de modo a acolher e conter a angústia inominável do sofrimento pela perda real e imaginária que a catástrofe produziu.

No episódio a que assistimos há duas figuras paradigmáticas de liderança. O primeiro ministro Wilson, representado como uma figura sensível, tomada por uma consternação, dor e um sentimento de culpa pela falha do Estado. A rainha encarna aqueles que, perante a catástrofe, não conseguem empatizar ou se condoer. É interessante observar sua travessia ao longo do episódio, a partir da presença de um Wilson “terapêutico” que, sem acusar, ajuda-a a descobrir que não se trata apenas da razão, mas também do afeto. Não se trata de montar um espetáculo, mas sim de poder demonstrar uma emoção genuína.

Aos poucos percebemos que a rainha não é indiferente à dor e ao sofrimento gerado pela catástrofe, mas há uma limitação inerente a sua personalidade, que procurará reparar ao longo dos anos. A série sugere que ela sentiu remorso pela inação pessoal no momento da crise. Desde o ocorrido, Aberfan se tornou a cidade que ela mais visitou no Reino Unido.

A população de um país se sente desamparada quando seu ou sua líder falha em reconhecer a gravidade de uma crise humanitária e a ruptura que ela provoca no tecido social e da subjetividade. Ele precisa ao lado da demonstração de empatia, oferecer à população respostas concretas. O líder que não dá conta desse desafio não pode oferecer um futuro. Se os governantes e a sociedade não reconhecem e assumem as respectivas responsabilidades por aquilo que foi provocado, dificilmente o trauma poderá ser superado.

 

[1] Participação no debate sobre “Aberfan”, episódio da série “The Crown” (T3 E3) que dramatiza a semana seguinte à tragédia galesa. “Aberfan” foi discutido à distância, na edição de abril do Ciclo de Cinema e Psicanálise, evento promovido pela Diretoria de Comunidade e Cultura, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), pela Folha de S. Paulo e pelo MIS. O vídeo do debate está disponível no YouTube (clique aqui)

 

* Bernardo Tanis é psicanalista, doutor em Psicologia Clínica. Presidente da SBPSP.

 



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