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Considerações psicanalíticas sobre suicídio

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O suicida deseja escapar de um sofrimento vivenciado como insuportável.  Sua mente não tem capacidade de digerir, simbolizar e elaborar experiências emocionais aterrorizadoras. Ou devido à intensidade e qualidade dos estímulos, internos e externos, ou/e porque sua mente tem dificuldades para transformá-los em pensamento simbólico.  

A mente se defende das situações traumáticas utilizando variados mecanismos, que incluem cisões, descargas, transformações em alucinose, recusas etc. Essas defesas podem ser insuficientes e se torna impossível viver com as ameaças de fragmentação e de aniquilamento. O suicida deseja livrar-se desse terror. Ele não quer propriamente morrer, já que a morte é algo desconhecido. Encontramo-nos, portanto, frente a uma aparente contradição: o suicida deseja eliminar o sofrimento e, para tal, se arrisca em direção ao desconhecido aterrorizante.  Seria esse terror desconhecido melhor que o terror vivenciado?

Antropólogos culturais e estudiosos das crenças e religiões confirmam os dados encontrados na clínica psicanalítica.  Frente ao desconhecido – da morte e do morrer – o ser humano cria fantasias e crenças que descrevem uma vida pós morte, idealizada, sem sofrimentos ou frustrações. Um “outro mundo” onde ele será acolhido e compreendido. A fantasia de retorno ao seio ou útero materno (a “mãe-terra”) pode emergir no material clínico.  

Nas religiões, poderá ser premiado o indivíduo “bom” ou que morreu como herói (eventualmente matando os “infiéis”). O Inferno é o oposto desse Paraíso, mas não costuma ser considerado pelo suicida, já que seu Inferno pessoal está ocorrendo aqui mesmo, na Terra.

As considerações acima nos mostram que o paciente suicida quer “morrer” e viver, ao mesmo tempo, e o resultado será determinado por inúmeras variáveis internas e externas. Entre estas a possibilidade do paciente ser acolhido, compreendido e ajudado.

Retomemos à ideia de trauma. Um modelo adequado (e terrível) é a tortura. O objetivo do torturador (que pode ser um carrasco, um agente do governo, um marido ou esposa, um pai, um grupo), é destruir a humanidade do torturado, transformando-o em “nada”.  Um bebê se torna “nada” se não é visto ou se é maltratado. As prisões e os campos de concentração fazem o mesmo. A violência social, do dia-a-dia, leva ao mesmo resultado.

Um paciente em que sua parte psicótica ameaça tomar todo o self, vive o sentimento terrível de deixar de existir. Incapaz até de alucinar em forma suficiente – o que daria algum sentido, mesmo que delirante, a seu sofrimento – verá o suicídio como a única saída.     

O paciente melancólico, aquele que introjetou um objeto ambivalente assassino, ainda que condenado à morte por seus supostos crimes, também está em busca do objeto idealizado. Por vezes encontramos, em suas fantasias, o reencontro com pessoas mortas, no outro mundo.  

O paciente que vive nos limites, que necessita da fusão com o outro para sentir-se existente, vivencia uma situação traumática quando o objeto se revela discriminado do self. A presença de uma parte não psicótica faz com que as configurações suicidas sejam menos intensas que no psicótico. Naqueles pacientes se torna marcante uma característica que também existe nos demais: o pedido de ajuda. Ele pode ser desesperado e/ou desajeitado. Trata-se de uma solicitação que se faz ao objeto para que ele não abandone, para que se retome a situação fusional. Projeta-se culpa e chantagem.  O objeto, se tiver características psicopáticas, poderá aproveitar-se da carência do indivíduo, constituindo-se relações sadomasoquistas.  

O aumento nas taxas de suicídio em adolescentes – é a única faixa etária em que tem aumentado impele o psicanalista a efetuar hipóteses sobre fatores sociais, consciente dos riscos de reducionismo e ideologização.

É comum considerar nossa sociedade como “narcísica”, no sentido que se bloqueia a consideração pela alteridade. O outro é usado apenas para preencher desejos, necessidades e fantasias. Dessa forma ele é desumanizado. Todos corremos o risco de acreditar que “felicidade” é possuir poder, bens materiais, prestígio ou “ser esperto”.  Perdem-se as verdadeiras relações afetivas. Quem não se adapta a esse modelo se sentirá excluído.  Não nos cabe, neste espaço, discutir fatores subjacentes a esse modelo, mas o psicanalista não pode deixar de considerar que esses fatores dificultarão o desenvolvimento inicial dos seres humanos, impedindo que vivam na realidade triangular.   As defesas narcísicas, maníacas e psicopáticas se tornam “normais” ou se transformam em sintomas psicóticos, melancólicos e comportamentos perversos ou limítrofes. Lembrando que essas configurações coexistem, dentro de cada um de nós.  O adolescente é mais vulnerável a essas situações.

O adolescente “normal”, e mais ainda aquele perturbado, retoma as relações simbióticas da infância, tendo que reelaborar as situações edípicas. Por isso o jovem é mais vulnerável a abandonos e intrusões, justamente em um momento de sua vida em que esses fatos estão ocorrendo – o luto pelos pais da infância, pelo corpo infantil etc, , somados à intensidade das fantasias sexuais e agressivas. A capacidade ou incapacidade de elaborar situações traumáticas dependerá de como vivenciou as experiências precoces, somado às características do ambiente. Sociedades narcísicas serão inadequadas e mais traumáticas. O bullying não é só dos colegas – é da própria sociedade que não dá condições dignas para seu desenvolvimento.

Devemos lembrar que acidentes de trânsito, overdoses e situações em que a pessoa se coloca em situações de violência (homicídio precipitado pela vítima) têm um forte componente suicida. .   

Existe o suicídio racional. Por exemplo, quando não mais se justifica o sofrimento por uma doença que não tem cura. O suicídio assistido faz parte desta categoria.

Ainda que as classificações acima possam ter certa utilidade o psicanalista deve utilizá-las apenas como modelos. Durante o processo analítico diferentes configurações predominarão, a cada momento, e o profissional deverá intuir os fatores para sua manifestação assim como para aquilo que está escondido e/ou não podendo ser simbolizado.

O profissional de saúde, mais ainda o psicanalista, se identifica com seu paciente, ao mesmo tempo que toma distância do que está vivenciando, para poder transformá-lo em pensamento.  Desespero e desesperança associados a sofrimento insuportável não simbolizado verbalmente acionam os sentimentos do analista, estimulando-o a investigar possíveis fantasias suicidas.  O paciente que percebe que seu analista pode defrontar-se com a morte e as fantasias suicidas se sente acolhido.  Encontra um companheiro(a) que não tem medo dos terrores infernais. (Ou melhor, tem menos medo que o paciente). Quando o analista percebe que não dá conta dos fatos, qualquer que seja o motivo, deve utilizar a retaguarda de um colega de profissão e/ou de equipe multiprofissional.  E, posteriormente, trabalhar as consequências dessa busca.

Uma ampliação das ideias colocadas nestes comentários poderá ser encontrada em:

Cassorla, RMS (2021). Estudos sobre suicídio. Psicanálise e Saúde Mental. São Paulo. Blucher.

Cassorla, RMS (2017). Suicídio: fatores inconscientes e aspectos socioculturais. Uma introdução. São Paulo: Blucher.

Cassorla, RMS (2000). Reflexões sobre teoria e técnica psicanalítica com pacientes potencialmente suicidas. Parte 1. Alter: Jornal de Estudos Psicodinâmicos (Brasília) 19:169-186; Parte 2. Idem: 19:367-386.

Roosevelt Cassorla é membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e professor titular da UNICAMP.  

Crédito: Dora Smék (ilustração de capa do livro Suicídio – Fatores Inconscientes e Aspectos Socioculturais: uma introdução, Ed. Blucher)

“As opiniões dos textos publicados no Blog da SBPSP são de responsabilidade exclusiva dos autores.”   



Comentários

One reply on “Considerações psicanalíticas sobre suicídio”

Vera Reis disse:

Um conteúdo necessário e de um esclarecimento excelente.

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