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O que será que será?

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*Luciana Saddi

Como falar de algo que não sabemos definir?

2020, tempos de Covid-19, dias de isolamento ou do eufemismo “afastamento social”. O frenesi habitual das ruas diminui, raros automóveis, baixos e esparsos ruídos. Comércio fechado, ruas vazias. A lentidão urbana prevalece em contraponto às palpitações diárias da população.  Jornalistas, políticos, colegas de profissão e pacientes falam que estamos em guerra como referência ao presente. “Front”, inimigo, ataque, defesa, insumos, armas químicas e biológicas, hospitais de campanha tornaram-se vocabulários frequentes, assim como vitória, derrota e terror. Escolher entre aqueles que podem viver e os que podem morrer se tornou assombração, fantasma, para muitos de nós – seja porque temos parentes trabalhando em hospitais, seja porque alguns de nós, possivelmente, enfrentarão tais desafios. A vida, hoje, imita a arte dos roteiros de filmes de terror e de guerra.

Mas se é guerra, qual o cenário de operações? Hospitais, enfermarias, UTIs. O contingente: enfermeiros e técnicos de saúde; os que estão na “linha de frente”. Na operação de logística e suprimentos, que sustenta as tropas. Cientistas, incansavelmente, vasculham soluções tecnológicas para cuidar dos doentes e diminuir o grau de letalidade. Uma hipotética vacina, ainda que esteja no futuro, é o graal da atualidade! Epidemiologistas, matemáticos, sociólogos e demógrafos são parte integrante do setor de inteligência e planejamento. Testes de laboratório são munição para a informação. Cloroquina? Tiro de festim. Isolamento é tática e estratégia.  O “esforço de guerra” agora é antítese, deve-se paralisar boa parte da atividade econômica.

Estranho, se guerra, sem um único disparo. Há, porém, outras dificuldades para manter a “guerra” como metáfora apropriada.  O isolamento independe da coerção do Estado, o medo nos empurra.  O “exército” ainda não nos tomou como inimigos, nos antecipamos às ordens e entendemos que é o melhor a fazer – talvez a única e desesperada opção no momento em que a propagação do vírus ameaça toda a sociedade. O vírus é o inimigo comum e apenas cooperação, articulação e solidariedade entre países, políticos, cientistas, laboratórios da indústria farmacêutica e, surpresa, até bancos podem contribuir para o enfrentamento da ameaça.

Antigamente, os jornalistas de guerra diziam que a verdade é a primeira vítima nos conflitos. A liberdade associa-se à verdade dessa maneira, ambas são as primeiras baixas do presente.  Em tempos de Covid-19 verdade, liberdade e solidariedade estão unidas. Não há como esconder as mortes e disfarçar os erros estratégicos cometidos pelos países e cidades no combate ao vírus. Como expressa o pensador italiano, Massimo Recalcati (jornal La Repubblica, 14 de março): “a liberdade em tempo de coronavírus não pode ser vivida sem o sentido da solidariedade. Eu me isolo por mim e por você. Você se isola por você e por mim.”

Refletindo, ainda, sobre a dificuldade em encontrar metáforas para tempos de Covid-19 impossível não lembrar das palavras de Svetlana Alexandrovna Aleksiévitch, escritora e jornalista bielorrussa, ganhadora do Nobel de Literatura em 2015. No livro “Vozes de Tchernóbil – A história oral do desastre nuclear”, Svetlana argumenta que a palavra guerra foi usada para designar a luta contra a radiação e seus efeitos. No entanto, se pergunta, que guerra foi capaz de contaminar o solo e as águas de todo um país por um ou dois mil anos? Tornar um território completamente morto, embora plantas e animais insistissem em permanecer e prosseguir. Que guerra impediu para sempre a entrada de pessoas nesse território ou dele retirou todos os seres humanos sem nenhum pertence? Nem em Hiroshima e Nagasaki, segundo Aleksiévitch, as consequências foram tão duradoras. O tempo adquiriu um outro sentido e a palavra guerra não pode dar conta desses acontecimentos. A escritora consumiu mais de vinte anos para escrever sobre o desastre atômico. Faltavam palavras, faltava compreensão. Foi preciso esperar o assombro decantar.

Como falar do novo desconhecido? Do que não tem nome, nem nuca terá? A poesia como transcendência cria novos sentidos.

Espero que o “novo” coronavírus e suas consequências não traga, nem de longe, o caráter de destruição que Svetlana expõe em sua obra. Não conheço a economia parada, o silêncio do mundo. Nunca vivi tal tempo nem conheço quem o tenha vivido antes. Os antigos que experimentaram as guerras do século XX já se foram, quase todos. Havia o “blackout”, mas por quanto tempo? Desconheço o isolamento social, o confinamento como política de Estado. A distância envergonhada e medrosa que temos uns dos outros. A solidariedade com os mais velhos e vulneráveis preenche a vida de jovens que até ontem queriam apenas se divertir – também desconhecia essa forma da força de vida se expressar. Nunca estive na guerra. Nunca vi São Paulo em tempo de espera. Um mundo sem consumo e comércio de futilidades. O que importa é comida e remédios. Ainda não chegamos ao “salve-se quem puder”, pelo menos até agora. As oscilações vertiginosas da Bolsa talvez não sejam a metáfora indicadora da retração econômica de agora nem da que virá.  Pouco sabemos sobre o hoje e menos sobre o amanhã. Como cantou o poeta: “amanhã ninguém sabe.”

Talvez a metáfora da guerra não seja adequada ao presente. Mais parece com um trapo do que uma roupa, somente esconde partes do corpo, não serve para vestir. Entendo que o presente sempre nos escapa. Precisaremos, de mais tempo ainda para encontrar as melhores palavras e designar o momento e responder: o que foi feito da vida?

O conceito psicanalítico de elaboração trata da procura de sentido para uma experiência traumática. O trauma percorre um longo caminho até que a elaboração o dome minimamente, o civilize. A prática nos ensina que algumas experiências adquirem tal magnitude, causam tantos danos, que a elaboração nunca termina. Nesse sentido o Covid-19 veio para ficar. No sentido biológico desejo vida breve ao vírus.

*Luciana Saddi é escritora e psicanalista, membro efetivo, docente e diretora de Cultura e Comunidade da SBPSP. Mestre em Psicologia Clínica pela PUC/SP. Autora de Educação para a Morte, ed. Patuá, coautora de Alcoolismo, Ed. Blucher, dentre outros livros e artigos publicados em revistas especializadas. Coordena junto ao MIS, com apoio da Folha de S. Paulo, o Ciclo de Cinema e Psicanálise “Mal-Estar na Civilização e Formas Contemporâneas de Sofrimento”. Também coordena junto à Livraria da Vila a série “Encontros sobre o Mal-Estar na Civilização”.

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Crédito: Photo by Burst from Pexels 



Comentários

2 replies on “O que será que será?”

Munira Bazzi Akrouche disse:

Parabéns pelas reflexões. Desenvolveu um panorama muito lúcido deste momento. Obrigada!! Abs

Flavia disse:

Muito bom, Luciana.
O que será?
Como será?
Quais serão os efeitos desse evento tão traumático?
Que virá, virá!

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