Encontre psicanalistas membros e membros filiados


Clínica Transcultural: o desafio de dizer o indizível

Home      Blog      Clínica Transcultural      Clínica Transcultural: o desafio de dizer o indizível

A cientista Katalin Karikó foi uma das ganhadoras do Premio Nobel de Medicina em 2023, reconhecida por seu mérito em desenvolver a vacina contra a Covid-19 que  ajudou a salvar milhões de pessoas no mundo todo. Karikó, pesquisadora, especialista em bioquímica, nasceu no interior da Hungria em 1955, filha de pais não acadêmicos, cresceu no comunismo, pleiteou uma bolsa de estudos na Inglaterra, foi recusada e eventualmente conseguiu trabalhar em centros de pesquisa nos Estados Unidos. Aprendeu inglês aos 19 anos e passou por grandes dificuldades pessoais, familiares, econômicas e profissionais devido a sua origem e à xenofobia (e misoginia)  dos países mais desenvolvidos. Sofreu grande discriminação junto aos colegas de departamento.

Sabe-se que muitas das grandes descobertas científicas foram realizadas por migrantes que não são do primeiro mundo. Jon Fosse, escritor norueguês, ganhou o Prêmio Nobel de Literatura de 2023 e segundo os premiadores, “por sua capacidade de dizer o indizível”, sendo essa sua maior virtude.

É dos dois temas acima que iremos tratar adiante, de como possibilitar a expressão e o acolhimento da dor silenciada pela migração.

Embora o mundo esteja cada vez mais globalizado e em certa medida homogêneo, os deslocamentos dos indivíduos e o contato com as diferenças vêm sendo um desafio para a tolerância à alteridade. Ao mesmo tempo em que a subjetividade diminui há uma soma na subjetividade. Sabemos que os  movimentos de migração vêm se intensificando em função de desastres naturais, guerras, perseguições políticas ou condições econômicas precárias levando milhares de pessoas a se refugiarem em terras distantes dos seus países de origem.

O próprio Freud  – e a ainda frágil comunidade psicanalítica (em sua maior parte composta por judeus), devido à situação política na Europa nos anos 30 – tiveram que experienciar tais movimentos de migração. Em meio às vicissitudes da guerra, os psicanalistas estabeleceram-se em vários lugares do mundo difundindo a psicanálise e de alguma forma correspondendo ao desejo de Freud de que a psicanálise tivesse ampla representatividade. O que teria sido da psicanálise se não tivesse havido a Segunda Guerra Mundial?

A prática clínica transcultural apresentou-se de modo empírico na medida que Freud recebia pacientes de outras culturas e também porque ele acreditava que a psicanálise deveria ser acessível a todos. Assim, concebeu e implementou clínicas públicas gratuitas de atendimento psicanalítico entre guerras nas cidades europeias derrubando o mito de que a psicanálise seria uma atividade burguesa concebida para ricos e demonstrando seu enorme potencial de proteção e instrumento de saúde pública.

A história da humanidade é a história de suas migrações. Somado ao desespero e ao desejo de sobrevivência e melhores condições sociais e econômicas, essas pessoas sofrem com o próprio desterramento, desenraizamento e a busca de identidade diante do novo lar. Presentes estão o sofrimento que resulta do luto pela perda da terra-mãe e a esperança de acolhimento e desenvolvimento diante do desconhecido que se impõe no novo país. Como escutar e acolher na clínica essa forma de sofrimento contemporâneo?

Defrontar-se com a diferença cultural implica em questões perturbadoras que podem ser mais ou menos intensas remetendo o sujeito às próprias experiências primordiais de desamparo bem como a situações de vulnerabilidade.

Ao se estabelecerem no novo lugar enfrentam a experiência da xenofobia (medo, discriminação, preconceito em relação ao estrangeiro) termo que se origina do grego zenos (estrangeiro) e que curiosamente se refere não àqueles que vinham de longe como os bárbaros, mas aos que pertenciam a comunidades vizinhas. Como o unheimlich (O estranho, de Freud) que aponta para a presença simultânea de uma vivência de conhecimento e estranhamento, sendo essas as características do inconsciente- estrangeiro e familiar ao mesmo tempo.

É nesse contexto que a Clínica Transcultural pode ser de valor inestimável.

A Clínica Transcultural é um trabalho clínico realizado entre culturas, uma clínica que atravessa culturas. Apesar da terminologia simples o processo de atendimento na Clínica Transcultural é intenso e desafiador. É o desafio de dizer o indizível, tanto para aqueles que procuram ajuda como para terapeutas que se dispõem a realizar tais atendimentos.

Desde 2016 a Clinica Transcultural , coordenada pela colega Maria Cecilia Pereira da Silva vem atendendo famílias de migrantes e refugiados e é parte do Centro de Atendimento Psicanalítico da SBPSP. Trabalha com o modelo de intervenção grupal e intervenção nas relações iniciais pais-bebê. Tais famílias são encaminhadas por centros de saúde e organizações não governamentais e são atendidas gratuitamente por um grupo de analistas que faz um trabalho clínico de psicanálise expandida. Essas famílias, em sua maior parte, está identificada com a falta; falta da sua terra-mãe, falta de atividades profissionais exercidas anteriormente, falta da língua materna, falta de referências, falta da família de origem, falta de boas condições econômicas. Em muitas situações a mãe é  a única responsável pela família diante das condições em que a migração ocorre, portanto também há uma falta do pai. A elaboração do luto, a possibilidade de estarem a salvo em um novo lar, de terem evitado situações precárias lhes estimula e encoraja a ir em busca de cuidados e possibilidades até então inimagináveis. A rede de apoio presente nos atendimentos se torna um espaço privilegiado de escuta e acolhimento criando novas referências para o migrante ou refugiado, além das referências originais de seu país de origem.

O setting da clínica transcultural é composto por um  terapeuta principal e por um grupo de terapeutas, de origens  e culturas diferentes que colaboram com suas percepções e observações individuais desse modo compondo um “setting mestiçado” (Moro, 2015)[1] A equipe recebe o paciente e sua família, os profissionais que fizeram o encaminhamento (e que também fazem parte da história da família no país) e um tradutor ou um intérprete cultural, para garantir que o paciente possa utilizar sua língua materna se possível. Se autorizado, os encontros podem ser filmados.

O espaço de acolhimento promovido pela equipe de terapeutas possibilita o trabalho de elaboração de situações traumáticas. As situações traumáticas provocadas pelas guerras, pelos campos de concentração, por ditaduras, por migrações forçadas, quando não processadas, deixam marcas encriptadas, geralmente silenciadas e impossíveis de serem simbolizadas.

Esse modelo de intervenção psicanalítica leva em conta a dimensão clínica, antropológica e também linguística, para dar sentido às interações entre os níveis coletivo, intersubjetivo e intrapsíquico. Valoriza e inclui as representações culturais do paciente e sua família. Esta metodologia foi criada por Georges Devereux (1970), fundador da etnopsicanálise, com o uso obrigatório da matriz epistemológica da psicanálise e da antropologia (Devereux, 1972).  

Ele propõe três princípios básicos: a universalidade psíquica em que o funcionamento psíquico é o que define o ser humano dando “o mesmo status (ético, mas também científico) a todos os seres humanos, às suas produções culturais e psíquicas, às suas maneiras de viver e pensar, mesmo que elas sejam, às vezes, desconcertantes!” (Devereux, 1970) .

O segundo princípio é o complementarismo implica a multiplicidade de referências e uma ruptura com a posição etnocêntrica, o terceiro princípio é o descentramento do analista que contribui para o o acolhimento da multiplicidade de repertórios culturais existentes. Complementarismo e descentramento são os componentes essenciais que instrumentalizam a posição ética do psicanalista nesta clínica plural e transcultural (Moro, 2015).

A equipe, formada por terapeutas de diferentes origens e culturas, a partir de um trabalho interno de continência e rêverie[2],abdica de seus próprios valores culturais e pré-concepções, descentra-se, procurando transformar em sonhos as experiências traumáticas relatadas pela família. Esses sonhos/pensamentos alfa são oferecidos ao grupo e transmitidos à família pela terapeuta principal.

Outro aspecto fundamental deste setting está relacionado ao modo como cada terapeuta se posiciona em relação à alteridade do paciente, os afetos sentidos, as teorias… o seu modo de fazer e pensar culturalmente, a construção de suas conjecturas e intervenções durante o atendimento, elaborados depois da consulta: a contratransferência cultural (Moro, 2015, p.190). Para Devereux a contratransferência tem duas dimensões, a dimensão afetiva e a dimensão cultural, não podendo existir somente na psicanálise de quatro ou cinco sessões por semana, mas em todas as situações em que há interação entre uma pessoa e outra, em todos os intercâmbios clínicos, mesmo que não sejam em sessões psicanalíticas clássicas.

Mais recentemente, em função do surgimento dos atendimentos online, também tem sido possível reproduzir o modelo da clínica transcultural através de plataformas de comunicação diminuindo distâncias e ampliando possibilidades de encontros entre analistas e famílias.

Toda migração é um ato de valor na vida do indivíduo e conduz a mudanças em toda a família e a história individual. Assim mesmo, mil vezes se escutam histórias de migrações que nos lembram dos motivos da viagem, inclusive escolhida, são ambivalentes no desejo e o medo de deixar aos seus, de sair de seu próprio país, a resolução de conflitos familiares e a culminação de uma trajetória de ruptura ou de aculturação

O encontro com o outro, estrangeiro, pertencente a outra cultura é muito mais que um desencontro com o familiar. Podemos viver uma ampliação pelo entrelaçamento de nossa história e cultura com a história e a cultura do outro. Não se trata simplesmente da aptidão para aceitar o outro, mas de estar em seu lugar, e ser um outro para si próprio. O estranhamento torna possível a paixão que é o itinerário em busca de si mesmo pelos caminhos da alteridade, já que a nossa escuta está sempre em busca do inconsciente e o inconsciente vive no estrangeiro, estrangeiro em cada um de nós…

Ao terminar esse artigo para o Blog de Psicanálise recebo a notícia avassaladora do ataque terrorista a Israel e o anúncio de uma nova guerra que ainda não sabemos que proporções irá tomar. Mas sabemos da violência, das vivências traumáticas, das famílias que serão dizimadas. A barbárie que vem sendo testemunhada nos deixa sem palavras. Como consequência dessa situação trágica bem como de muitas outras, refugiados e migrantes poderão se beneficiar do trabalho da Clínica Transcultural através da escuta, do acolhimento e de uma psicanálise ampliada e democrática.

Bibliografia

Danto, Elizabeth (2005). As clínicas públicas de Freud: Psicanálise e Justiça Social, 1918-1938

Freud, S. – Obras Completas, Vol XI

Devereaux, G. (1970). Essais d’ethnopsychanalyse générale. Gallimard.

Devereux, G. (1972). Ethnopsychanalyse complémentariste. Flammarion. 

Kacelnik, J. (1998). A Clínica Psicanalítica em Língua Estrangeira – Tese de Mestrado em Psicologia Clínica (PUC-SP)

Moro, M. R. (2015). Psicoterapia transcultural da migração. Psicologia USP, 26(2), 186-192.

Pereira da Silva, M. Cecília (2023). Dor, Alegria e Reconstrução – Jornal de Psicanálise, São Paulo.

Pereira da Silva, M. Cecília (2023). Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do mundo – Revista Ide vol. 45, São Paulo. 

Membros filiados ao Instituto Durval Marcondes da SBPSP (2017). Quando a sala de espera do analista é o mundo – Entrevista com Marie Rose MoroRevista Ide vol. 39, São Paulo. 

[1] Marie Rose Moro é psiquiatra infantil, professora de psiquiatria da criança e do adolescente na Universidade Paris Descartes, Sorbonne-Cité (Paris, França) e psicanalista – SPP (IPA). É chefe do Departamento de Medicina Transcultural e Psicopatologia do Adolescente, Maison de Solenn, Maison des adolescents do Hospital Cochin (Paris, França). Criou e é a responsável pelas consultas transculturais destinadas a bebês, crianças, adolescentes e suas famílias, no Hospital Avicenne (Bobigny) e Cochin (Paris).

[2] Para W. R. Bion, rêverie é a capacidade fundamental  da mãe para captar, elaborar, processar e desintoxicar o bebê da intensidade emocional de suas sensações e comunicações não-verbais. Se bem sucedido esse processo dá início à constituição do pensamento. 

Joyce Kacelnik é psicóloga formada pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Membro Associado da SBPSP. Equipe da Diretoria Científica SBPSP. Comissão Virgínia Bicudo SBPSP. Clinica Transcultural SBPSP. 

Imagem: Shutterstock 

As opiniões dos textos publicados no Blog da SBPSP são de responsabilidade exclusiva dos autores.    



Comentários

One reply on “Clínica Transcultural: o desafio de dizer o indizível”

Anne Lise Di Moise Scappaticci disse:

Muito bom esse artigo! Agradeço

mais comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *