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Christopher Bollas: psicanálise entre arte, estética e poética

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Christopher Bollas nasceu em Washington, DC, mas viveu a infância e a adolescência em Laguna Beach, na Califórnia. Entre as décadas de 1960/1970, graduou-se em História (Berkeley, Califórnia) e doutorou-se em Literatura inglesa (Buffallo, New York). Durante a graduação, interessou-se por Psicanálise. Nesse sentido, engajou-se num trabalho clínico com crianças autistas e esquizofrênicas, em um centro pediátrico (Oakland), assim como, posteriormente, realizou estudos com Holland e Schwartz (New York), responsáveis pela criação de uma sofisticada linha de pesquisa e crítica literária psicanalítica. Porém, impedido de formar-se psicanalista nos Estados Unidos, por não ser médico nem psicólogo, partiu para Londres com o propósito de realizar formação na Sociedade Britânica de Psicanálise. Então, aproximando-se do chamado Independent Group, aprofundou seus conhecimentos acerca da obra de Winnicott, sem jamais ignorar Freud, Klein, Bion e os analistas franceses e italianos com os quais se relaciona até hoje. E, além dos analisandos e dos casos supervisionados por ele, comparecem em seus escritos pensadores e artistas que vão de Homero a Milosz, de Stravinski a De Kooning, de Platão a Heidegger, de Carl Schorske e Alan Dundes a Foucault, de Freud e Klein a Lacan e Pontalis entre outros. Tais referências não são mera exibição de uma espantosa erudição, mas recursos para a elaboração da cultura, integrada à prática clínica. Mas, se em seus escritos o conteúdo é psicanalítico, seu estilo é literário, aspecto expressivo da forma idiomática do autor que também é elaborada nas novelas e peças teatrais que escreveu, à maneira de Ionesco e Beckett, assim como no seu trabalho como pintor. Membro da Sociedade Britânica de Psicanálise e também de outros centros em várias partes do mundo, Bollas reflete sobre inúmeros temas – da associação livre à interpretação, do inconsciente receptivo à poética da estrutura psíquica, das diversas psicopatologias às questões sociopolíticas, das teorias psicanalíticas às mais sofisticadas obras culturais. Porém, nesse campo polifônico, um tema é constante: a experiência estética (Scalia, 2002).

Ora, muitos são os psicanalistas contemporâneos que aproximam arte, estética e psicanálise. Entre eles, Donald Meltzer (1995, p. 268), também norte-americano com formação em Londres, que escreve: “se a prática da psicanálise é uma arte, como eu acredito firmemente, e suas descobertas são as da ciência descritiva, é essencial que ela seja feita por indivíduos que possam pensar por si próprios. Isto significa solidão, incerteza e um sentido inescapável de perseguição incipiente por parte do grupo – as pessoas que pensam igual, e podem dizer ‘nós’, em vez de ‘eu’ ”. Quanto a isso, Vincenzo Bonaminio refere-se a Bollas com uma expressão italiana: “è farina del suo sacco” (Nettleton, 2017, p.x). Quer dizer, ele pensa por si próprio, postura que implica um distanciamento de qualquer modelo pré-definido, inclusive da ideia clássica de método que pressupõe a dicotomia sujeito / objeto do conhecimento, pressuposto vigente na ciência, que levou Merleau-Ponty (1964, p. 9) a concluir – “a ciência manipula as coisas e renuncia a habitá-las”. Assim, em diálogo com alguns pensadores contemporâneos, Bollas articula experiência estética e experiência psicanalítica, propondo pensar a clínica como poética, interrogando o “fazer clínico” como “trabalho lúdico” (Bollas, 1998, p. 30) cujo movimento imprime uma forma à matéria com a qual trabalha. Nesse sentido, pode-se alinhar essa concepção de clínica a certa maneira contemporânea de pensar a poética. Apenas para dar um exemplo, lembro um dos mais notáveis críticos literários brasileiros, Antonio Candido (2004, p. 186), que afirma ser o fazer poético uma construção que, ao “dar forma aos sentimentos e à visão do mundo, nos organiza, nos liberta do caos e, portanto, nos humaniza”. Ou seja, “o caos originário (…), o material bruto a partir do qual o produtor escolheu uma forma, se torna ordem; por isso, o meu caos interior também se ordena (…). Toda obra literária pressupõe esta superação do caos, determinada por um arranjo especial das palavras, fazendo uma proposta de sentido” (p. 178). Analogamente, Bollas pensa que a forma surge do próprio fazer clínico-poético, uma vez que os conteúdos psíquicos só se expressam numa estrutura da qual eles são inseparáveis. Nessa medida, o autor conceitua a “poética da estrutura psíquica” e a “experiência interior que transforma a desordem em uma estrutura”, relacionando essas ideias à “experiência estética”. Esta advém “no instante em que a pessoa se sente misteriosamente envolvida por um objeto que expressa o seu self ” (Bollas, 1998, pp. 65). Ou seja, “a experiência estética é uma recordação existencial do tempo em que o comunicar-se ocorria, basicamente, através da ilusão de profunda harmonia entre sujeito e objeto” (Bollas, 1992a, p. 50).  Em outras palavras, a articulação entre cultura, área de ilusão e vivências pessoais atravessa a experiência estética que se expressa em composições complexas. Por exemplo, “a criação de um sonho não é somente uma notável realização estética, é a forma mais sofisticada de pensamento que possuímos” (Bollas. 2007, 72-73).  E ao analisar sonhos, situações clínicas e culturais, Bollas evidencia a forma desse processo que supõe e implica criatividade, assim como certa destrutividade. Então, considerando o que a psicanálise tem a dizer da criatividade, escreve ensaios em que aborda um princípio norteador da arte contemporânea – “criar é destruir” (Bollas, 1999, ps.167-180; 2009, ps. 47-77). É impossível resumir aqui esses ensaios.  Mas, lembro que é a observação dos movimentos de criação e destruição nas artes que possibilita a caracterização da clínica psicanalítica como um processo dialético, isto é, por um lado, dar tempo ao analisando para que nele surja a articulação de seu mundo interno, o que não necessariamente conduz, por outro lado, ao abandono do procedimento desconstrutivo. Diz Bollas (1992, p. 39): “a vida mental é suficientemente complexa e sofisticada para abarcar essa contradição relativamente pequena. Podemos continuar a indagar sobre as associações do analisando e destruir seus textos manifestos, sem perturbar a evolução da transferência que se movimenta em uma categoria diferente de significação: a desconstrução do material como objeto faz parte da busca do significado e a elaboração do self, através da transferência, faz parte do estabelecimento do significado. A necessidade de saber e a força para vir a ser não se excluem”. Ora, é possível entender epistemologicamente esse processo através do conceito de “negatividade formadora” (Giannotti, 1973, p. 34) que designa o movimento de interiorização da experiência externa enquanto não saber e de exteriorização do sentido obtido pela reflexão, movimento que organiza a experiência numa forma. E, nos termos da Estética contemporânea, pode-se entender esse processo como “formatividade” (Pareyson, 1984), uma concepção que define o processo artístico não como a execução de algo pré-concebido ou a exata expressão de um projeto segundo regras pré-estabelecidas, mas como um processo tal que enquanto faz nega o feito, o instituído, e inventa o por fazer e o modo de fazer, o instituinte. Nesse sentido, a arte é um fazer em que execução e invenção são atividades diferentes, porém, simultâneas e inseparáveis. Nela a realização não é somente um facere, mas um perficere, isto é, um acabar, um levar a cumprimento e inteireza, de modo que é uma invenção tão radical que dá lugar a uma forma perfeita, indicativa de que o processo se perfez. Ela é a realização plena de um projeto original. Nesse sentido, a atividade artística consiste propriamente no “formar”, isto é, exatamente num executar que é, ao mesmo tempo, inventar e descobrir. E se tais conceitos estéticos servem-nos para aproximar fazer psicanalítico e fazer artístico, eles também permitem distinguí-los, pois definem esses fazeres particulares como poéticas (Frayze-Pereira, 2007; 2010). Ou seja, assim como no campo da arte as poéticas se realizam enquanto programas artísticos particulares (ex.: barroco, romantismo, realismo, impressionismo, expressionismo…), na psicanálise às diferentes técnicas correspondem diferentes doutrinas que justificam as primeiras (ex.: kleiniana, bioniana, lacaniana…).  Assim, tais poéticas, como maneiras distintas de interpretar o mundo, irredutíveis umas às outras, na psicanálise, articulam a apreensão e, no caso da arte, a exposição das múltiplas formas do ser. Trata-se de um tipo de operação que confere às experiências determinada forma (ou estrutura) e que, do ponto de vista estético, chama-se fazer poético.

No entanto, para entendermos melhor essas ideias, seria preciso comparar a atividade clínica com a ação artística. É o que o Bollas (1999, ps.167-180) faz, considerando artistas contemporâneos que não operam com temas, mas com investimentos e desinvestimentos, gerenciados pelas pulsões de vida e de morte. Nesse sentido, analisa a atividade pictórica do holandês Willem De Kooning que, ao lado de Pollock e Rothko, é uma das grandes referências do movimento expressionista abstrato, uma poética elaborada durante o segundo pós-guerra, em Nova York. Nesse contexto, sabe-se que há uma fase da produção pictórica de De Kooning, conhecida como poética do apagamento, que, nos anos 1950, notabilizou o artista por fazer e refazer uma pintura diversas vezes, numa mesma tela ou passando de uma tela para outra, como se estivesse sempre realizando a mesma obra. Ora, esse gesto artístico é interessante, se comparado a uma psicanálise. Mas, as ligações que se formam no campo transferencial são emocionalmente mais complexas e nem sempre se concretizam no campo da visibilidade. Entretanto, Bollas (1999, p. 175) pensa que, por um lado, se para manter a pintura viva, o pintor pinta a visão de algo que nunca existiu antes, podendo acontecer uma sucessão de revisões numa mesma tela e de uma para outra até a última, por outro lado, o analisando, não apenas constrói a si mesmo em outro lugar, mas recria-se segundo a lógica de uma estética irredutível à pura experiência interna e à mera manifestação externa, uma vez que usa o analista como tela na qual imprime a sua configuração pessoal. Em contrapartida, comprometido com o invisível, o analista interpreta a figura, não para encontrar outra dentro dela, mas para facultar, poeticamente, a aparição de certa inteligência da forma pela qual se compõem as inúmeras configurações do ser. A dor e o prazer presentes nesse processo, de maneira análoga, aparecem na arte. Assim, reconhecendo que é impossível reduzir o fazer psicanalítico ao fazer artístico e este àquele, Bollas admite que a arte pode inspirar os psicanalistas, assim como a psicanálise pode servir aos artistas – o que se verificou, no tempo de Freud, na ação surrealista e, contemporaneamente, em poéticas perturbadoras como, por exemplo, a inventada por Louise Bourgeois que submeteu a psicanálise à arte. Nesse caso, ao apreciar essa invenção/inversão, imagino que Christopher Bollas sorriu.  

Referências:
Bollas, C. A sombra do objeto. Psicanálise do conhecido não pensado. RJ: Imago, 1992a. — Forças do destino. Psicanálise e idioma humano. RJ: Imago, 1992b. — Cracking up. The work of unconscious experience. London: Routledge, 1995. — Sendo um personagem. RJ: Revinter, 1998. — The mystery of things. London/New York: Routledge, 1999. – The freudian moment. London: Karnak, 2007. — The evocative object world. London/New York: Routledge, 2009. 
Candido, A. Vários escritos. SP/RJ: Duas Cidades/Ouro sobre Azul, 2004. 
Frayze-Pereira, J. A.  Psychoanalysis, science, and art: aesthetics in the making of a psychoanalyst. International Journal of Psycho-analysis v. 88, p. 489-505, 2007. — Arte, Dor. Inquietudes entre Estética e Psicanálise. Cotia: Ateliê, 2010, 2ª ed.. 
Giannotti, J. A. (1973). O ardil do trabalho. Estudos Cebrap, 44, 5-63.
Meltzer, D. A apreensão do belo. RJ: Imago, 1995.
Merleau-Ponty, M. L’oeil et l’esprit. Paris: Gallimard, 1964.
Nettleton, S.  The metapsychology of C Bollas. London, Routledge, 2017.
Pareyson, L. Os problemas da estética. SP: Martins Fontes, 1984. 
Scalia, J. The vitality of the objects. NY: Continuum, 2002.     

*João A. Frayze-Pereira é membro efetivo e analista didata da SBPSP. Diretor de Cultura e Comunidade da SBPSP (desde 2021). Professor livre-docente do Instituto de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Estética e História da Arte da USP. 

Imagem: Ouro de Maragogi, Alagoas. Fotografia de Lila Schwartz. Série Norte/Nordeste, Brasil, 2022/2024. 

As opiniões dos textos publicados no Blog da SBPSP são de responsabilidade exclusiva dos autores.     



Comentários

2 replies on “Christopher Bollas: psicanálise entre arte, estética e poética”

Sheila Lobo disse:

Muito bom textoa arte e psicanálise tem tudo a ver!

Elsa Susemihl disse:

João, que comentário interessantíssimo, muitas reflexões e questões complexas e profundas sobre esses ‘fazeres’ tão aparentados! Parabéns! Abs

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