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Paulo Mendes da Rocha – Arquiteto da cidade

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Vitória, ES, 25 de outubro de 1928

São Paulo, SP, 23 de maio de  2021

Muitas histórias. Muitas memórias. Não são necessárias perguntas: Paulo Mendes da Rocha instala-se, apresenta-se e toma conta do espaço. A nós, resta fruir: ouvir suas histórias, encadeadas num fluxo narrativo sem fim. Cada palavra, cada interrupção, cada detalhe: mais um fio que é tecido. Estamos diante do livre associar no seu estado mais livre, um método interno de Paulo, que ele impõe aos psicanalistas que se rendem ao seu mapa simbólico.

Nesse mapa, há lugar para família, pai, mãe, avô, infância, e geografia: muita geografia. O olhar é hábil em percorrer a geologia, os terrenos, os rios, os mares e portos, as distâncias, a iluminação, e as gentes que povoam pequenas cidades de origem, perdidas e convocadas por sua memória, que ele mesmo reconhece não saber “até que ponto é verdade o que eu conto, ou se estou inventando, já que estou velho”. Velho? A nosso ver, uma potente usina, guiada por uma espécie de infância curiosa que sempre dirige seu olhar ao mundo e descobre o que ainda não viu.

Seu relato fala de conflito, que ele sempre enxerga, percebe e incorpora, mas que jamais aprisiona na geografia interna. Trata-se do conflito urbano, das cidades, da degenerescência, do excesso que tudo transforma em mercadoria e forja desejos falsos que consomem inutilmente os cidadãos da polis.

Na entrevista de Paulo Mendes da Rocha, somos testemunhas de um conflito ininterrupto, entre natureza e cultura, natureza e construções – terreno da arquitetura.

A Psicanálise nos leva a pensar nos conceitos de pulsão de morte – pulsão em seu estado mais bruto, corpóreo, que tende à regressão e ao estado inanimado, quiçá destruição. (quase que o mais próximo do estado de natureza); e pulsão de vida, que significa investimentos, deslocamentos, busca de desvios. É do jogo dessas duas classes de pulsões que surge a vida criativa.

Paulo deixa claro seu trabalho de interferência sobre a natureza, que se presta às obras humanas, oferecendo seu solo, mas ao mesmo tempo permitindo intervenções que a alterem e transformem. Um jogo de forças, muitas vezes conflitivo, que visa mudanças e rompe com repetições e monotonias.

Paulo Mendes da Rocha expressa o seu conceito de memória de forma muito ilustrativa: “… eu tenho uma memória guardada. O saber é feito de intuição. E na hora que eu o convoco, na urgência, nas angústias, surge o que eu mesmo não sabia que sabia: é uma coisa fantástica!”

Ao descrever sua intervenção na Pinacoteca, Paulo Mendes da Rocha faz uso da memória e do passado – uma construção neoclássica, fora de lugar e de tempo, dissonante da proposta, do uso do espaço e do próprio crescimento das avenidas de seu entorno – para transgredir, para não repetir uma fórmula pouco criativa e monótona, distante da ideia de visitação, surpresa, prazer. Sua intervenção, descrita em detalhes na entrevista, e que resultou num espaço bastante integrado na cidade de São Paulo e operante, demonstra um método simples e ao mesmo tempo complexo. Preservou a fachada de tijolinhos, defenestrou janelas, inverteu entradas, mas não destruiu. Daí a complexidade do processo, que a partir de algo velho porque decadente e inoperante, trouxe algo novo, funcional, racional, belo e nada previsível.

É muito prazeroso acompanharmos o arquiteto Paulo Mendes da Rocha sonhando seus projetos: a observação ingênua e curiosa do terreno, do entorno, da geologia, dos volumes. Esse momento simples e mágico permite um descolamento da realidade concreta e o vislumbre do vir-a-ser. Assim se passou com a concepção do MuBE, da Pinacoteca: um não-saber, um estado de expectação, que logo encontra uma saída inusitada para o espaço de interesse. Tão simples, que pode ser alvo de menosprezo; mas muito complexo, já que contém em si a síntese de um novo edifício, prático, racional e eficiente.

No caso da Pinacoteca, os passarinhos indicaram a Paulo o caminho que deveria ser erguido: uma ponte. A Avenida Tiradentes, de um gigantismo inconveniente, foi o que promoveu a ideia transgressora que consistiu em inverter  a entrada do novo museu. E as janelas, herança de uma ideia neoclássica fora de lugar, previsível e monótona, foram defenestradas e mudaram de função: janelas /aberturas voltadas para dentro, e nenhum pátio interno – recurso que o arquiteto dispensa e critica. O resultado é testemunha de uma ideia orgânica, esperta, prática e criativa: exemplo de tradição, invenção e transgressão. Defenestrada é quase uma destruição poética, garantia de um novo projeto ancorado num edifício decadente e em decomposição, que passa a ganhar vida a partir da mão do arquiteto.

A modernização da cidade de São Paulo, mais intensa no começo do século XX, teve um custo imenso para grande parte de seus habitantes, que vivia em estado de precariedade. A partir de seu crescimento veloz, desordenado e fragmentado, a cidade passa a criar problemas de diversas ordens para seus habitantes: de acolhimento, morada e lugar, passa a representar violência, desamparo, medo. Um mero exemplo numérico: em alguns poucos anos, o diâmetro da cidade de São Paulo estendeu-se por 45 quilômetros, e o centro da cidade foi-se transformando em algo intransitável: a opção pelo automóvel nem ao automóvel serviu.

Sabemos que a situação de isolamento, desenraizamento, mudanças muito bruscas, desaparecimento de lugares, apagamento das memórias, pode ser mais um ingrediente nefasto na configuração dos grupos humanos.

Paulo Mendes da Rocha narra e demonstra, com seus edifícios (dois deles muito caros a nós paulistanos: a Pinacoteca e o MuBE), como a arquitetura, praticada de forma ética, pode significar tradição, invenção e dar lugar  à  transgressão que conduz a novas formas. O último projeto realizado pelo arquiteto, no centro de São Paulo, o Sesc 24 de maio, tem no seu último andar, a céu aberto, uma enorme piscina, retomando, metaforicamente, as águas que corriam no assoalho da cidade, nossos rios que foram sufocados, exterminados. Uma forma poética, de nos lembrar nossas origens que viraram ruínas…

Nós, paulistanos, somos gratos à presença do arquiteto na cidade – Narcisos que não apreciam muito os espelhos que mostram nossos rostos tão maltratados…

*Texto extraído de artigo publicado na Revista Brasileira de Psicanálise, vol. 46, n. 2. 2012 – Passagens I (pp. 36-43). Comentários da entrevista com Paulo Mendes da Rocha, em 04 de abril de 2012.

Dora Tognolli é psicanalista, membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, diretora do Instituto Durval Marcondes, da SBPSP. 

Crédito: Pinacoteca do Estado de São Paulo, Wikimedia.org 

 



Comentários

One reply on “Paulo Mendes da Rocha – Arquiteto da cidade”

Maria Salles disse:

Que lindo texto, quem percorreu estes lugares entende exatamente o que é narrado.
E neste momento trás imensa nostalgia.

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