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A psicanálise não será a mesma

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Após o pesadelo que se abateu sobre o mundo no início de 2020, a psicanálise não será mais a mesma.

As mudanças que ocorreram no século XXI alcançaram agora um nível de catástrofe, mas questões e acontecimentos dos primeiros vinte anos já se faziam presentes, alguns impactantes, e outros igualmente poderosos no dia a dia da realidade compartilhada e com repercussão na subjetividade de homens e mulheres.

O século XXI começou com o ataque às Torres Gêmeas e a emergência do terrorismo; logo surgiram os movimentos migratórios e conflitos armados locais envolvendo países, etnias, religiões, e ainda outros de difícil caracterização e compreensão complexa.

Assistimos ao surgimento da ferramenta das redes sociais que aos poucos se tornaram virulentas e no campo da política levaram a polarização de ideologias e de governantes.

Os questionamentos de costumes e instituições que já ocorriam nos fins do século passado se acentuaram.

Essas situações constituem temas psicanalíticos como traumas, narcisismo revanchista, projeções da violência, desconsideração com o outro e com a subjetividade, além do ataque à possibilidade de informação verdadeira. Lembramos que Piera Aulagnier diz que o que caracteriza o humano é a capacidade de informação.

Uma situação de menosprezo à verdade e fake news como ataque à informação verdadeira incide sobre o que há de mais precioso na condição humana e a psicanálise, desde Freud, se pautou pela defesa da verdade.

Aprendemos que o ego é a instância encarregada de levar em conta a realidade externa e interna, no adiamento do prazer pulsional e sua adaptação e negociação com a realidade.

As neuroses estudadas por Freud ocorriam em um contexto familiar no qual a criança crescia em um ambiente restrito, com forte relação com as figuras parentais e em terreno propício para a observação de vivências edípicas.

Esta configuração contextual se alterou. Já em 1975, André Green dizia que os quadros clínicos de então já apareciam como novas patologias, donde a importância da figura do analista e questões relacionadas ao setting, requerendo uma reconsideração da técnica analítica.

Com o advento do atendimento não presencial, que já se esboçava nos últimos anos e a adaptação inevitável do momento presente de isolamento sanitário, a possibilidade de um encontro entre analista e paciente, que se pretende seja psicanalítico seguindo as descobertas de Freud, se tornaram problemáticas.

Agora, o encontro analítico ocorre em locais onde os participantes podem estar muito distantes geograficamente um do outro e no qual a questão da intimidade sobressai.

Assim, a psicanálise clínica se depara com um enorme desafio no campo do setting interno do analista, e na vivência do paciente, pela ausência do setting físico ao qual nos habituamos.

Do ponto de vista do intrapsíquico – e penso ser esta focalização o objetivo central da teoria e clínica psicanalíticas – o “eu” abrange o outro, do ponto de vista de uma metapsicologia ampliada. Nesta configuração, a subjetividade se constitui, na qual o “eu” se mescla com os objetos internos, no início as figuras parentais, e ao longo da vida, com as figuras importantes com as quais nos identificamos e ainda na escolha de objetos.

A psicanálise leva em conta o outro do outro na constituição do self; mas o contexto cultural como uma situação mais ampla influi também poderosamente na natureza humana.

E agora? Estamos todos impactados por uma ameaça global à vida e nosso “eu” não se limita à importância dos outros próximos. Somos todos irmãos, sob expectativas, incertezas e temores realistas, que se acrescentam às ansiedades de cada um.

As nuvens ameaçadoras que nos envolvem e sufocam a humanidade incidem poderosamente sobre o objeto da psicanálise e, inevitavelmente, vão levar a técnica e formação psicanalíticas a escrutínio e mudanças.

Passada a pandemia, o mundo não será o mesmo e nem a psicanálise será a mesma.

 

* João Baptista Novaes Ferreira França é analista didata da SBPSP e Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP.

Crédito: Eric Goverde, Pexels.com



Comentários

One reply on “A psicanálise não será a mesma”

MUNIRA MUSTAFA BAZZI AKROUCHE disse:

Brilhante texto. Uma síntese muito realista de deste mundo tão complexo que nos cabe decifrar a cada dia!!

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