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A pele de Moïse pelo avesso

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Esboçava-se um ensaio sobre o livro “O avesso da pele” de Jeferson Tenório, quando a notícia do assassinato de Moïse Mugenyi Kabagambe nos revira pelo avesso e nos sequestra as palavras. Diante do assombro, ainda é possível falar sobre literatura?

Surgem perguntas e indignação – o que são as palavras diante das pauladas, da tortura, da crueldade? Por outro lado, o que nos resta na luta pelo direito à vida senão nos manifestarmos através de ações e palavras? 

A mãe de Moïse, Ivana Lay, apela para que todos se manifestem: “Mataram ele como um bicho. Eu vi na televisão que, aqui no Brasil, se um cachorro morrer, há várias manifestações. Então, eu quero que todo mundo me ajude com justiça.”

O livro “O avesso da pele” é uma manifestação, um tributo a todos os negros assassinados por tratar, justamente, do tema do racismo e da violência. Jeferson Tenório construiu um relato potente, onde o narrador, um filho tentando dar coesão à própria vida, reconstitui quem é e quem foi seu pai assassinado. Para isso, apropria-se da pele do pai e inventa, predominantemente em segunda pessoa, uma história que remonte suas origens: “o que foi dito por vocês, antes de minha memória, foi dito em retalhos. Então precisei juntar pedaços e inventar uma história”.

O autor faz com que o leitor facilmente se identifique com sua narrativa ao criar personagens carismáticos e complexos, que entre tantas demandas, sonham com o amor, sofrem com dores físicas e emocionais, submetem-se com paixão a profissões mal remuneradas, buscam análise, tentam conciliações em situações conjugais insustentáveis e, sobretudo, levantam-se todos os dias da cama para encarar uma vida que os machuca.

No entanto, tudo é permeado pela cor: até uma breve saída de casa, que no livro e na vida pode terminar em confusão, violência e assassinato. O espanto é sempre o sangue vermelho que escorre do corpo negro manchando as ruas. 

O que seria “o avesso da pele”? Algo que jamais se apresenta aos olhos: vasos, nervos, carne. Sangue e dor correm pelo avesso da pele. Pelo avesso, seriam todas as peles da mesma cor? Não. Mesmo pelo avesso, a pele sangra em cores de desigualdade. 

É na pele que as dores causadas pelo racismo ardem, sem preciosismos. Seja na ficção, seja na realidade, a violência evidencia, uma vez mais, que a ideia de que o brasileiro é um povo cordial e pacífico é uma lenda construída em benefício de poucos, que subjuga e cala negros, indígenas, pobres e mulheres. 

O narrador reflete: “quem nunca teve uma ferida de meio centímetro dentro de si, talvez pense que não seja grande coisa.” A morte de Moïse será apenas mais uma ferida de meio centímetro nesse país doente? E, “sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas”?

Lutar pela vida é também lutar, em um sentido amplo, pelo direito à literatura, conforme Antônio Cândido nos propõe. Segundo ele, o direito à literatura estaria entre os direitos humanos básicos, pelo seu poderoso potencial de instrução e educação, pela possibilidade de transmitir visões de mundo e de sonhar/fabular/elaborar sobre tudo aquilo que a vida cotidiana não dá conta, o que nos tornaria menos bárbaros. Mas o que resta do direito à literatura quando faltam o direito à liberdade e à vida? 

Não é ficção que um jovem negro, estrangeiro e refugiado que, ao reivindicar seu salário, seja visto como uma ameaça e por isso seja amansado a pauladas, amarrado e morto. As raízes escravocratas não são ficção.

A literatura psicanalítica também ampara largamente essa discussão: “O homem é o lobo do homem”, Freud nos provoca em “O mal-estar na civilização” (1930). A humanidade tenta constantemente negar a crueldade inerente ao ser humano- é mais confortável considerar o homem como brando, ávido de amor, que no máximo pode se defender quando atacado, mas o próprio Freud admite que foi um grande avanço para a Psicanálise a capacidade de se reformular e assumir que todos possuem, entre suas forças pulsionais, a agressividade como representante da pulsão de morte.

A tendência à violência, disposição original do ser humano, é o mais poderoso obstáculo da civilização, que a coloca em permanente ameaça de desintegração, e não é diferente no atual momento histórico. Não seria o caso de pretender excluir da atividade humana a luta e a disputa, mas de garantir que a oposição não signifique agressão, extermínio ou barbárie. É tarefa da cultura criar instrumentos que deem contorno ao indivíduo e à comunidade e mantenham contida a violência. Para isso, organizam-se sistemas econômicos e políticos, eficientes em maior ou menor grau, atuando através de governos, que ao promover os direitos básicos dos cidadãos, como saúde, educação, segurança pública e acesso à cultura etc. conseguem manter relativamente reprimidas as manifestações de barbárie, e que, em casos bem-sucedidos, são mais eficazes na contenção da violência.

O mundo interno de cada indivíduo está em constante interação com a realidade externa, em uma dialética que busca capacitar o Eu a atender, ainda que parcialmente, as demandas de suas poderosas instâncias psíquicas: id (representante da pulsão) e superego (interiorização da lei), mas também a aceitar os limites impostos pela sociedade – “A civilização controla então o perigoso prazer em agredir que tem o indivíduo, ao enfraquecê-lo, desarmá-lo e fazer com que seja vigiado por uma instância em seu interior (superego).” (Freud, 2018/1930).

Em uma sociedade em que as leis e a organização social estão debilitadas, os membros cujo Eu não é capaz de estabelecer esta dialética conciliatória, ficam mais suscetíveis a se tornarem portadores dos sintomas grupais e expressarem sua agressividade através de atos violentos. A saída para a barbárie é o exemplo máximo da falha dos esforços civilizatórios no indivíduo e possivelmente na comunidade, o que pode resultar no extermínio de ambos.

No Brasil, terra de contrastes brutais, em que os direitos humanos fundamentais estão constantemente ameaçados, ao mesmo tempo em que celebramos a consagração literária de Jeferson Tenório, o carioca de 44 anos radicado em Porto Alegre que venceu, com “O avesso da pele”, o Prêmio Jabuti (2021) na categoria “romance literário” – Prêmio Jabuti que, aliás, quase sempre foi branco: a primeira mulher negra homenageada foi Conceição Evaristo, em 2019, ou seja, depois de 60 anos de sua existência -, choramos a morte de Moïse Mugenyi Kabagambe, 24 anos, congolês e refugiado de guerra civil com a mãe e os irmãos no Brasil desde os 11 anos, e que foi assassinado por espancamento no Rio de Janeiro em 24 de janeiro de 2022, quando foi receber o pagamento por duas diárias de serviços prestados. 

A literatura é capaz de falar quando nos faltam palavras, ela nos escancara a realidade de raríssimos Jefersons para milhões de Moïses que permanecem sem nome para uma sociedade que não suporta seus avessos e escolhe ignorá-los. Que o assassinato de Moïse nos permita enxergar nossos avessos, porque há feridas de meio centímetro em cada centímetro quadrado de nossa pele social.

*Ensaio publicado parcialmente no “Observatório Psicanalítico” da FEBRAPSI em 04/02/2022.

 

Obs.: O escritor Jeferson Tenório também é convidado do próximo Congresso da Febrapsi: “Laços: o Eu e o mundo”, em mesa redonda que ocorrerá dia 26/03/22: “Observatório Psicanalítico: a escrita na construção do laço social”, junto com Cíntia Xavier de Albuquerque (SPBsb), Cláudio Laks Eizirick (SPPA) e Raya Angel Zonana (SBPSP), com coordenação da Maria Elizabeth Mori (SPBsb), uma das editoras do “Observatório Psicanalítico”, esse espaço que permite aos psicanalistas pensar e se manifestar, sob a própria pele, na pele do outro.

Bibliografia:

Andrade, C.D, Congresso internacional do medo. In Antologia poética (organizada pelo autor) 1902 a 1987, 63 edição. Editora Record, Rio de Janeiro, 2009

Freud.S. (2011) Psicologia de massas e análise do Eu. In S. Freud, Obras completas (Vol. 15, P.C. de Souza, Trad.). Companhia das letras. (Trabalho original publicado em 1921)

Freud.S. (2018) O eu e o Id. In S. Freud, Obras completas (Vol. 16, P.C. de Souza, Trad.). Companhia das letras. (Trabalho original publicado em 1923)

Freud.S. (2018) O mal-estar na civilização. In S. Freud, Obras completas (Vol. 18, P.C. de Souza, Trad.). Companhia das letras. (Trabalho original publicado em 1930)

Tenório, J. O Avesso da pele. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

Vanessa Figueiredo Corrêa, psiquiatra e psicanalista, membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e do Grupo de Estudos Psicanalíticos de São José do Rio Preto e Região (GEP Rio Preto). 

Gizela Turkiewicz, psiquiatra e psicanalista, membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). 

Imagem: A Dor, Vera Ferro



Comentários

One reply on “A pele de Moïse pelo avesso”

Leda Beolchi Spessoto disse:

Parabenizo Gisela e Vanessa pelo artigo sucinto e sensivel que nos ofereceram sobre tema tão pungente.

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