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A dolorosa descoberta do mundo

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Se você dividir conosco as nossas pobrezas, nós vamos dividir com você as nossas riquezas: todas as estrelas do céu, todas as estradas mundo afora, e as nossas melhores horas.” (Hoje é Dia de Maria, de Luiz Fernando Carvalho, Rede Globo, 2005). A saga de uma menina que queria conhecer o mar, a cena na qual a Dona Boneca convida Maria para fazer parte do circo itinerante.

Certa vez, quando adolescente, procurei o Padre da paróquia onde eu morava para falar com ele de uma descoberta importante que havia feito: “Eu amo os meus pais acima de tudo, quero viver a minha vida pra isso, para fazê-los felizes.” Achava ter encontrado o segredo da felicidade completa, o sentido de vida meio apressado logo após o luto da infância, algo assim como “eu e os meus pais para sempre”. Mas houve uma resposta do Padre, muito atencioso comigo ele disse: “Então, você já usufruiu bastante dos seus pais, agora é a vez dos seus irmãos. Você tem que saber abrir mãos para que eles também tenham as mesmas oportunidades que você teve.” Tinha eu 14 anos de idade! Naquele momento eu estava sendo apresentado a uma tragédia, a minha primogeneidade tinha se tornado um problema. Não sei se eu tinha mente suficiente para estas coisas, acho que não. A súbita consciência de estar me apropriando de algo que não era só meu, pior que isso, de estar fazendo mal a outras pessoas. O capitalismo é um pouco assim, a apropriação inconsciente de bens alheios, de pessoas sem rosto, com justificativas sentimentais.

São Paulo, em Romanos 7, diz: “Eu não faço o bem que eu quero, mas faço o mal que não quero, miserável homem que eu sou, quem me libertará deste corpo de morte?” O Pe. Antônio foi uma espécie de meu primeiro psicanalista. Naquele momento estava marcada a hora do meu encontro com o mundo, a hora de deixar a minha casa para trás, e de encontrar o meu destino desconhecido. Para além da porta a existência de um mundo infinito. Estava marcado também o meu encontro com a psicanálise, a descoberta do mundo interno.

“No dia que eu vim me embora não teve nada demais. Minha mãe chorava em ai, minha irmã chorava em ui. Minha avó já quase morta, minha mãe até a porta, minha irmã até a rua, até o porto meu pai, o qual não disse palavra. Minha mala fedia, cheirava mal. Eu ia seguindo, nem chorando, nem sorrindo. Naquele dia não teve nada demais.” (No dia que eu vim-me embora, de Gilberto Gil e Caetano Veloso). Temos uma versão linda desta música com os sertanejos Pena Branca & Xavantinho.

A casa é o lugar do feminino, o lugar no qual habita a mulher. O lugar gravitacional endogâmico, do cheiro do pecado, e do incesto. O pai é o agente do mundo, do último ato do parto, da “expulsão” e do lançamento para além da força gravitacional da infância. Ser expulso de casa é um processo silencioso e quase imperceptível. Foi assim que ainda pequeno incontáveis vezes fui ao cinema levado pelo meu pai, em silêncio, “cinema-porto” para o mundo. O pai representa o mundo e a interdição, a sexualidade é um impulso de conhecimento para além do mundo conhecido. Nunca mais olhar para trás. Quando isto não dá muito certo entram em cena as prescrições de medicamentos, condenações ao salitre psicotrópico, numa espécie de castração química do conhecimento. A chamada doença mental pode ser possivelmente uma falha do pai (e não da mãe, famosa vilã da psicanálise e dos filmes de Woody Allen), processos que não se completaram. A mala surrada e fétida parece ser um umbigo transgeracional que acumula na sua cavidade o sedimento de gerações em decomposição (a mesma mala que teria sido usada pelo pai!), camadas geológicas de processos depressivos que não se completaram na forma de conhecimento.

Creio que o que chamamos meio displicentemente de “Complexo de Édipo” é algo ainda mal compreendido, como na tragédia de Sófocles, o triângulo amoroso no qual o filho (Édipo), vítima do destino cego, mata o pai (Laio) para sem o saber ficar com a mãe (Jocasta). Algo no mínimo muito estranho, coisa que condena a nossa espécie a um destino demencial e perverso, ou psicótico, traçado por deuses onipotentes, sem nenhum livre arbítrio humano. Pobres criaturas. O sexo endogâmico é a matriz de aberrações psicológicas, próprias das comunidades primitivas e isoladas, sem contatos culturais. Entre nós, talvez, as comunidades de imigrantes que aqui no Brasil se estabeleceram, cujo isolamento, às vezes com várias famílias de parentes próximos morando na mesma casa, eram estratégias defensivas e de sobrevivência provisória. O mal estava feito. “Lavoura Arcaica” (de novo Luiz Fernando Carvalho, 2001), do livro autobiográfico de Raduan Nassar, o filme que convulsionou a história do cinema, é justamente sobre uma comunidade de libaneses imigrantes, com costumes isolados, a história de um amor psicótico entre dois irmãos, o menino adolescente que vigia a irmã e que, entre outras coisas, procurava torturado pelo cheiro das roupas dela no cesto de roupas sujas da família, o cheiro do pecado e da culpa.

Mas, o desprezado e velho “Édipo” diz respeito principalmente à relação com os irmãos, a multiplicidade da vida, a existência de outros seres, para além do eu. Para além das nossas ambições de poder está a relação com o mundo e com a cultura, o mundo dos homens. Na casa do mundo há a casa das gentes, tantas casas quanto pessoas existem, cada uma com o seu rosto e com o seu próprio nome. O mundo além do Édipo doméstico. “Será mesmo que este bicharoco vai ser mesmo nosso irmão?” (O Patinho Feio, de Hans Cristian Andersen, 1843) É claro, que no nosso universo autocriado não existe mais lugar para mais ninguém, a lotação está esgotada.  O outro é o não eu, não aceitamos facilmente aquilo que em essência nos nega, ou que nega as nossas fantasias onipotentes.

Conheci Freud além-mar muito precocemente, através de um filme (minha adolescência foi meio complicada!). Fui me tornando caçador de filmes, estes mensageiros de culturas e lugares distantes, o Sol nunca se põe no império do cinema. “Freud, Além da Alma” (John Huston, 1962) estava sendo apresentado na TV Cultura, numa semana dedicada ao filme, com uma sessão de debates. Ali estavam entre outros Rubem Biáfora, Luciano Ramos, e um jovem chamado Rubens Ewald Filho. Um filme em preto e branco, meio sombrio como convém aos mistérios da mente, mas mostrava um Freud heroico, enfrentando o isolamento e o desprezo do meio científicos da época e lutando contra as forças obscurantistas que dominavam as academias médicas ainda no final do século 19, o desconhecimento dos violentos conflitos mentais com os desejos que, desde a infância, produzem sintomas físicos e bloqueios mentais. Freud entrou no meio da fogueira da Inquisição e ali deu palavras às bruxas e às feiticeiras, até então condenadas ao fogo eterno dos hospícios.  Vendo este filme, algo aconteceu dentro de mim, um tipo de vocação, era isso, ainda meio confuso, o que eu queria ser; comecei timidamente e à distância a ter amor pela psicanálise.

No filme “Paisagem na Neblina” (Angelopoulos, 1988) dois irmãos ainda crianças fazem uma peregrinação pelas estradas da Grécia impulsionados pela procura do pai que ainda não conhecem. A certa hora pegam carona na boleia de um caminhão do circo itinerante, dirigido pelo próprio dono. “Qual é o seu trabalho?”, perguntam. “Eu ensino as pessoas a rirem e a chorarem”, ele responde. “É um trabalho muito difícil.” E lhes mostra as pessoas no passeio público, quase todas cabisbaixas, cinzentas e tristes, pessoas em litígio com o mundo no qual não se sentem fazendo parte. Ensinar emoção é um trabalho muito difícil. Angelopoulos estava definindo a arte como a pedagogia do ser.

Cecil B. DeMille (1881-1959), um dos fundadores do cinema americano, não esconde sua admiração pelo circo, o palco das tragédias humanas. As feras, as bailarinas em trajes sumários, aventureiros arriscando a própria vida, os mágicos canastrões, e os palhaços trôpegos de nariz vermelho. Acreditem, toda a humanidade cabe dentro deste pequeno picadeiro e destas pequenas palavras, nós todos estamos ali. Não é à toa que Spielberg confessa que o seu criativo cinema surgiu na sua adolescência influenciado pelo belo filme de DeMille de 1952. Há outros exemplos, grandes cineastas foram influenciados pelo circo, entre eles Chaplin, Fellini, Bergman, Woody Allen, Wenders e o nosso Cacá Diegues.

Aprender a rir e a chorar pressupõe a descoberta da própria alma (ninguém é um “boneco de corda”), e esta é a razão de ser algo tão difícil. Ai, a notícia carece de exatidão, a alma é uma descoberta do monoteísmo, a descoberta da intimidade. Moisés foi um grande descobridor, fez uma meia dúzia de invenções que mudaram o mundo, entre elas o domingo, certamente uma unanimidade. Deus é um ser individual que fala a cada pessoa de modo individual. O povo hebreu é um povo nômade e sem pátria, daí a necessidade de um deus que possa ser representado em palavras, diferente dos deuses primitivos que eram representados em coisas, em estátuas, ou como os egípcios que escreviam na pedra; os hieróglifos pressupõem uma fixação geográfica. O monoteísmo liberta o homem do lugar onde nasceu. Temos que sair de casa. Deus tem de ser algo portátil, na mala ou no bolso, em qualquer quarto perto da rodoviária.

Os mandamentos são coisas muito simples, princípios de organização social que estão gravados na mente das pessoas. Deus conversa através de palavras, as mesmas palavras que criaram o mundo. E isto é incrível! Assim, a criação dos livros, mais uma das grandes invenções de Moisés, algo que podemos carregar na aventura de existir. “Deus é luz da mente eterna.” E isto faz da psicanálise uma descoberta óbvia da cultura judaica, Freud foi um grande intérprete do judaísmo e do errante aventura humana. O homem tem que cuspir fora a maçã do engasgo edípico para ocupar o lugar da palavra; não são os mandamentos, mas o homem livre que fala por si mesmo. A palavra liberta o pensamento e o pensamento liberta o homem. Freud interpretou a longa espera que foi a nossa infância e a história da humanidade.

Se isto for verdade, se Deus “conversa” através da mente individual, é melhor nos apressarmos. Temos que cuidar bem da nossa mente, nos vestirmos para a festa, não podemos ficar de fora deste suposto acontecimento milagroso.

Um dia desses uma pessoa querida do meu consultório me disse: “Não estou acostumada a planejar a minha vida. As coisas mais importantes que me aconteceram não foram planejadas.” Eu disse a ela: “Então você acredita em milagres?” Ela: “Nunca pensei sobre isso.” Eu: “Você é um milagre! Tudo o que nós conversamos aqui é um milagre.” Ela ficou pensativa um pouco, depois levantou o olhar e me disse: “Que bom que é fazer análise.”

O mundo é o mundo do sofrimento e da solidão, todas as coisas estão em sofrimento, a natureza, a matéria, e os seres vivos, os homens todos estão em sofrimento. Os clamores do mundo esperam pelo nosso entendimento. Lembrando Carlos Drumond, “Vai, Carlos! Ser gauche na vida.” (Poema das Sete Faces, 1930) Meu pai diria, vai, filho! Ser doutor na vida. Vai se misturar com os males dos homens, as secreções putrefatas, as contaminações, vais se tornar doente, conhecer a dor e o desespero. Viver no mundo é o começo do desmoronamento da saúde, das defesas aristocráticas, da imunidade parlamentar, das estruturas do poder, o luto da eternidade. Descemos do trono para nos sujarmos com a vida. E isso dói!

Depois do porto, além-mar, a família a perder de vista, a Ciência assume o controle do mundo, os pontos cardiais, a direção do vento. Depois do longo sono religioso o humanismo renascentista e a Ciência moderna haviam chegado à minha distante paróquia da infância. Estava inaugurada para mim uma época de descobertas científicas, geográficas e artísticas. Tinha eu 14 anos de idade! Tinha eu que ser doutor. (“Quatorze anos”, de Paulinho da Viola).

O antropocentrismo estava ameaçado, os cientistas do século 16 e 17 estavam descobrindo o mundo. Ali estavam nomes como os de Copérnico, Galileu, Kepler e Newton. O universo é muito maior do que se pensava até então, e obedece a leis matemáticas do mesmo jeito que acontece na Terra; a mesma força que faz cair a maçã é a foça que governa os demais corpos celestes, o nosso planeta compartilha o mundo com outros planetas irmãos. Perdemos o trono, destituídos da primazia cósmica. O Céu estava vazio de Deus, não é mais uma propriedade particular numa ilha paradisíaca. Claro, Ele continua existindo no único lugar no qual ele sempre existiu, não no céu, mas dentro da alma humana. E isto é só o começo, muito ainda está por acontecer.

A Ciência resolveu muitas questões cósmicas complicadas, mas algumas ainda permanecem desconhecidas, muitas delas dentro do próprio homem. Por exemplo, por qual motivo nascemos tão dependentes, pobres e carentes. E de como isso ao longo da nossa vida irá se constituir na experiência de humanidade, uma qualidade única e consciente da nossa espécie. Com todas as nossas dificuldades conseguimos ter compaixão pelo sofrimento do outro, tratar doenças, proteger os mais vulneráveis, rezar pelos filhos, e, talvez o mais incrível… compramos livros! Minhas prateleiras estão cheias deles, quase uma constelação, apesar de os ler muito pouco.

Montaigne (1533-1592) nos diz que o mundo é a casa da vida, é nele que se vive e é nele que se deve compreender a vida. “O homem é um ser “estranho”, um “monstro” e um “milagre”, porque nunca cessa de mudar. “O homem só é verdadeiro nas suas transformações.”

Hoje ainda quando me sento à mesa com os meus irmãos, nas tardes em que enganamos o tempo, ficamos ali reverenciando nossos pais, o fato de termos uma origem. Somos filhos! Rimos, brincamos, como se ainda fossemos crianças. Brindamos à nossa sobrevivência a tantos problemas difíceis, cada um à sua maneira. As nossas melhores horas, sob as estrelas, na encruzilhada de tantas estradas. “A minha alma sempre foi a arena na qual acontece a luta incessante das minhas alegrias e das minhas amarguras, do meu espírito e da minha carne, o palco no qual esses dois exércitos se golpeiam e se confundem” (A Última Tentação, de Mikos Kazantzákis, Grua, 2015).

Clarisvaldo Rapeli é médico, psicanalista e filósofo. Membro da SBPSP.    

Imagem: O Circo (Georges Seurat, 1890-1891)

As opiniões dos textos publicados no Blog da SBPSP são de responsabilidade exclusiva dos autores.  



Comentários

2 replies on “A dolorosa descoberta do mundo”

JOSE ANTONIO ZAGO disse:

Texto profundo que traz de forma cirúrgica para a superfície consciente o despertar para a vida com um projeto de viver mais dirigido por milagres cotidianas que o próprio projeto. “Vai ser gauche na vida” de Drummond ou como couve flor lançada ao mundo no universo sartreano ou como qualquer coisa que não pediu para nascer e se vê no mundo um problema e tanto a resolver até a morte. Viver de forma mais saudável seria sempre trabalhando o desconfortável e sempre indagando o conforto. A ciência parece ter trazido o conforto para a dor e para o sofrimento físico, ao menos em boa parte de tudo que é sofrer. Mas a ciência se esqueceu de nós, do nosso interior . A parte da ciência que nos faz aproximar de nosso íntimo muitas vezes é ofendida ou desprezada pela ciência do mundo concreto. Que fazer? Viver bem no sentido íntimo é como disse Kierkegaard que nosso crescimento como pessoas é uma intensa labuta de vitórias precárias e provisórias e de desafios sempre remanescente. Obrigado ao autor cujo texto estimula pensar e refletir no milagre da vida mental.

Patricia Fraguas disse:

Um texto que me faz sentir real .
Muito bonito!

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