Psicanálise e literatura: uma entrevista com Benjamin Ogden
Home Blog Literatura e psicanálise Psicanálise e literatura: uma entrevista com Benjamin OgdenA relação estreita entre psicanálise e literatura é bastante conhecida. De Freud aos teóricos atuais, raros são os analistas que não beberam das águas do vasto repertório produzido por poetas e escritores. Mas a incursão da psicanálise no terreno da literatura nem sempre foi bem aceita por críticos literários. Para pensar essas questões, o Blog da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo propôs três questões ao crítico literário norte-americano, Benjamin Ogden, especialista na questão.
Blog da SBPSP: Como você enxerga a relação entre a crítica literária e a psicanálise?
B. Ogden: Minha posição a respeito do valor da literatura para a psicanálise, e do valor da psicanálise para a literatura, é heterodoxa. A posição tradicional é a de que a psicanálise pode encontrar na literatura a confirmação e exemplificação de suas teorias psicológicas, como no caso de um romance cuja heroína se comporta de acordo com a teoria freudiana da pulsão de morte, por exemplo. Nessa situação hipotética, a personagem ilustra, elucida ou, no melhor dos casos, refina o conceito psicanalítico. Conforme essa posição, uma obra literária pode servir como evidência útil das teorias psicanalíticas, ou até mesmo aprofundá-las. Por sua vez, a psicanálise oferece a escritores e leitores de obras literárias uma consciência maior de aspectos que poderiam ter permanecido invisíveis sem o instrumental psicanalítico. Por exemplo, a importância da manifestação de material inconsciente nas obras.
Tal arranjo entre literatura e psicanálise pode ser descrito como transacional e epistemológico: sugere que a melhor relação entre psicanálise e literatura é aquela em que ambas as áreas convergem agressivamente uma em direção à outra, compartilhando linguagem teórica e conhecimento psíquico como se as fronteiras entre a psicanálise e a literatura fossem de fácil transposição, meras linhas tênues e não verdadeiras muralhas. Não há nada de fundamentalmente equivocado com essa suposição, a não ser a manutenção de certo status quo: a relação entre essas disciplinas tem sido comumente enxergada por essa ótica.
No entanto, permitam-me propor um outro arranjo. Imagine que você esteja em pé em meio a duas linhas paralelas que se estendem no horizonte. Desde o ponto de vista no qual você está parado contemplando as linhas, elas parecem convergir em algum ponto na distância. Trata-se de uma ilusão de ótica bastante conhecida… Se você caminhar ao longo das linhas, buscando o ponto efetivo de convergência, irá se desapontar: as linhas nunca convergirão. O que fazer? Uma solução seria alucinar uma convergência: fantasiar um ponto de entroncamento para camuflar a realidade da situação. E é isso que eu acho que tem acontecido na relação entre a literatura e a psicanálise: tendemos a querer eliminar o espaço entre as duas disciplinas para insistir em um ponto de contato. Porém, acredito que todo autor, leitor ou psicanalista está fadado a habitar esse espaço entre as disciplinas. As linhas nunca se cruzam e nunca se cruzarão. E o que acontecerá se passarmos a aceitar esse espaço intermediário e tentarmos criar algo novo, algo diferente, uma nova maneira de pensar nas relações entre a psicanálise e a literatura?
O ganho para as duas disciplinas estaria na experiência de vivenciar esse espaço intermediário, preenchendo-o com novos modos de pensar e escrever. O que cada pessoa faz com esse espaço – um espaço tanto ontológico quanto epistemológico – é a recompensa e o benefício da coexistência entre psicanálise e literatura.
A frase de abertura do romance O coração é um caçador solitário (1940), de Carson McCuller’s, retrata uma relação entre dois personagens que poderia bem servir como modelo para o tipo de relacionamento que estou propondo entre psicanálise e literatura: “Na cidade havia dois mudos, e eles estavam sempre juntos.” McCuller’s está nos dizendo que uma grande intimidade pode se desenvolver entre duas pessoas, mesmo quando elas não podem conversar uma com a outra. Uma outra maneira de colocar a questão seria dizer que duas pessoas que não podem convergir – não podem se comunicar – podem conviver lado a lado, com um grau de proximidade tão elevado que seria equivocado considerá-las separadas, embora fosse igualmente equivocado considerá-las totalmente unidas, como se fossem uma única pessoa e não duas. Embora os dois personagens de McCuller’s andassem “de braços dados para ir ao trabalho” todos os dias, a autora nos conta, na frase seguinte, que “os amigos eram muito diferentes”. E, não obstante a diferença, enquanto amigos com muito carinho entre si, encontraram uma maneira de preencher o espaço entre eles para além das palavras, com algo que pode ser eternamente misterioso para todos, menos para eles, ou até mesmo para eles.
Qual o modo de comunicação entre esses mudos? É esse o mistério e o paradoxo que deveria ser desenvolvido por pessoas mais capazes do que eu, para que se abra um novo paradigma para a relação entre a literatura e a psicanálise, um paradigma que poderia ser igualmente relevante para o modo de comunicação entre outras áreas do saber.
Blog da SBPSP: Enquanto crítico literário, como você enxerga o impacto que a revolução psicanalítica teve sobre a literatura? A literatura mudou – consciente ou inconscientemente – depois de Freud? Você poderia nos indicar alguma obra literária que você sente como particularmente marcada pela psicanálise?
B. Ogden: Sem dúvida, a influência de Freud sobre a primeira geração de escritores que o leram foi imensa. Uma maneira de traçar o legado de Freud é pelo papel que a ambiguidade e a sugestão tiveram nos trabalhos dos escritores modernistas. Uma das marcas do modernismo é a frequência com a qual essa literatura busca – por meio de alguma palavra, gesto ou imagem – produzir a sugestão no leitor de que algo de suprema importância psicológica está se passando, embora permaneça ambíguo exatamente o que está se passando e o que na linguagem produziu tal sensação. Uma frase ou verso trivial, que pode parecer inocente e até banal na sua superfície, induz no leitor a sensação de estar prenhe de múltiplas possibilidades de sentidos e vasta riqueza emocional, contanto que consigamos acessar sua íntima vibração. Mesmo que a literatura sempre tenha estado marcada pela nuance, a revolução psicanalítica aprofundou isso de maneira incomensurável.
Poderíamos buscar também na famosa “teoria do iceberg” ou “teoria da omissão”, de Ernest Hemingway, um exemplo de como a revolução freudiana marcou a literatura. Hemingway escreveu, em Morte ao entardecer (1932):
“Se um escritor de prosa escreve sobre algo que conhece, pode querer omitir certas coisas, e o leitor, se o escritor for autêntico, vai ter uma percepção dessas coisas tão forte quanto teria se o escritor tivesse de fato escrito sobre elas. A dignidade no movimento de um iceberg se deve ao fato de apenas um oitavo estar acima da superfície da água.”
Depois da psicanálise, um bom escritor não precisa revelar todos os detalhes de um personagem, de um comportamento ou de uma ação. Essa é uma revolução na literatura que se seguiu à revolução psicanalítica na compreensão daquilo que seres humanos encerram ou revelam, consciente ou inconscientemente. E essa revolução na estilística literária demandou que críticos literários passassem a ficar mais atentos às diversas maneiras pelas quais escritores produzem ambiguidade ou essa sensação de omissão.
Em termos de exemplificação, podemos nos atentar ao próprio Hemingway. É dele um conto que me parece particularmente colorido pela revolução psicanalítica. Trata-se de “Gato na chuva” (1925), um conto tão prosaico e mundano que poderia passar despercebido. Mas ele produz um estranho efeito de perdurar na mente do leitor. E se faz isso é porque contém um segredo – um segredo que não é nunca explicitamente revelado e está tão bem escondido que um leitor inteligente poderia deixá-lo escapar por inteiro. Mesmo assim, ousaria dizer que, ainda que o leitor não o tenha percebido, sentiu seu efeito. Ou seja, é possível ler o conto, sentir-se emocionalmente contaminado por ele, sem nunca captar o segredo que contribuiu para a produção desse efeito. E, não, não vou revelar aqui do que se trata!
Blog da SBPSP: Como você distinguiria a boa crítica literária de acento psicanalítico daquela desacertada ou mal realizada?
B. Ogden: A crítica literária de orientação psicanalítica perdeu espaço nos departamentos literários pelo mesmo motivo que a psicanálise perdeu espaço cultural: por arrogância. A psicanálise passou a se portar como uma ideologia totalizante, à semelhança do marxismo – e não é à toa que a crítica literária marxista e a crítica literária psicanalítica mantêm laços estreitos entre si até hoje. O que isso representou na prática foi que leituras psicanalíticas de literatura passaram a simplesmente converter literatura em psicanálise. A psicanálise passou a reduzir a literatura a nada mais do que a expressão disfarçada de verdades que ela já tinha para si como certas! Isso resultou em uma rejeição ampla da crítica literária psicanalítica, que passou a ser enxergada como teleológica e arcaica. E essa tendência muitas vezes persiste… No geral, a psicanálise faz uso da literatura ou para explicar o objeto literário utilizando as ferramentas da psicanálise, ou para ilustrar conceitos psicanalíticos por meio de exemplos literários. Como disse acima, isso pode ser realizado de modo mais ou menos adequado, mas, pessoalmente, gostaria de ver novas formas de crítica literária de orientação psicanalítica que fugissem desses lugares-comuns e problematizassem as relações entre literatura e psicanálise de novas maneiras.
Benjamin H. Ogden, PhD em crítica literária pela Universidade de Rutgers, é autor de dois livros sobre a relação entre a psicanálise e a literatura: O ouvido do analista e o olho do crítico: repensando psicanálise e literatura (2013, em coautoria com Thomas H. Ogden e publicado no Brasil pela Escuta, em 2014) e Beyond Psychoanalytic Literary Criticism: Between Literature and Mind (Routledge, 2018). Atualmente é professor de Literatura e Humanidades no Stevens Institute of Technology, em Nova Jersey. E-mail: bogden80@gmail.com
Imagem: Benjamin H. Ogden
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