O Processo, de Franz Kafka, e a dimensão temporal da experiência psíquica
Home Blog Franz Kafka O Processo, de Franz Kafka, e a dimensão temporal da experiência psíquicaMariana Ali Mies[1]
Neste ano de 2025, a primeira edição de “O Processo”, de Franz Kafka, completa seu centenário. É uma publicação póstuma: Kafka faleceu em 1924, de tuberculose. A seu amigo Max Brod solicitou que o manuscrito incompleto fosse destruído; para a graça da humanidade, Brod descumpriu sua promessa. Há discussão, que provavelmente jamais será pacificada, se a ordem dos capítulos está correta[2]. Um capítulo já avançado na leitura do livro, particularmente inquietante e conflituoso, não foi concluído, e o leitor deve suportar a curiosidade de conhecer seu desenrolar. A proposta do livro é, em si, misteriosa e perturbadora: Josef K., o personagem principal, logo na primeira cena, é abordado em sua residência por policiais que vêm notificá-lo de sua detenção. O livro começa com uma frase de impacto em estilo particularmente kafkiano: “Alguém certamente havia caluniado Josef K., pois certa manhã ele foi detido sem ter feito mal algum” (p.7, 1925). A partir de então, abre-se uma ação criminal contra ele, sem que jamais saiba do que é formalmente acusado. A inexorabilidade do processo (que nunca deixa de avançar, mas que, ao mesmo tempo, parece nunca sair do lugar); a burocracia incompreensível; os funcionários públicos simplórios e de classe social muito inferior ao Sr. K, mas que detêm os rumos de sua vida; a subordinação aos advogados, que sabem de tudo, mas não sabem de nada; e também as mulheres, cuja capacidade de sedução as coloca em posição de improvável poder, compõem um estado de coisas que corrói sistematicamente a existência de Josef K. Uma vida que parecia se desenvolver com sucesso, agora paralisada e repetitiva; o processo criminal, um nó em uma corda antes solta, por onde a existência podia escoar livremente.
A partir dessa impressão causada por tal obstáculo na vida do pobre Sr. K, proponho uma breve reflexão sobre a ideia de processo e sua relação com a teoria das posições de Melanie Klein[3], a partir da compreensão de Thomas Ogden. Mais precisamente, sobre a perturbação da percepção da dimensão temporal na posição esquizoparanoide (PS), o estancamento da impressão de passagem do tempo, que pode novamente se desenrolar na posição depressiva (D), uma vez que haja elaboração da posição anterior. É um tema que comportaria pesquisa longa e aprofundada, mas, aqui, faço um breve destaque desse aspecto da experiência psíquica, algo digno de nota e observação, especialmente no contexto clínico. A não experimentação da passagem do tempo é um elemento que incrementa de forma significativa a dor da organização esquizoparanoide, dificultando de forma peculiar o enfrentamento de tal situação e, consequentemente, do trabalho analítico.
Há, na definição da palavra “processo”, algo que contém a dimensão da temporalidade: é um “conjunto de ações contínuas e sistemáticas, desenvolvidas para um determinado fim; curso, evolução, desenvolvimento”; “modo de fazer ou de produzir algo; método, técnica, procedimento”; “sequência ordenada de fatos ou fenômenos; encadeamento, sucessão” (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa). Ao indivíduo, do ponto de vista existencial, uma experiência de “processo” exige, como prerrogativa, uma experiência na continuidade de ser: uma existência na qual se sucedem etapas e fases, contidas na linha do tempo, uma percepção de haver se transformado psiquicamente e fisicamente, de viver muitas vidas dentro de uma única, mantendo – daí a sua complexidade – um fio condutor constante (o eu) que perpassa todas as transformações. É uma experiência integrativa que une os estados internos mais díspares, os comportamentos mais improváveis e contraditórios. Tal integração não é completa e constante como não são constantes as posições do aparelho psíquico (Klein, 1946). Em “Sujeitos da Psicanálise” (1994), Ogden trabalha a questão da temporalidade no tocante à teoria das posições kleiniana, dizendo:
“A posição esquizoparanoide representa uma organização psíquica que gera um estado de ser ahistórico, relativamente desprovido da experiência de um sujeito interpretante que faça mediação entre o sentido de identidade (o ‘eu’) e a experiência sensorial vivida. (…) Esse modo esquizoparanoide contribui para a sensação de imediatismo e intensidade da experiência” (p. 35, grifos e tradução da autora).
E ainda,
“A posição depressiva é caracterizada por: (1) uma experiência de um ‘eu’ interpretante que faz mediação entre si mesmo e a experiência sensorial vivida; (2) a presença de um senso de self enraizado historicamente, contínuo ao longo do tempo e das variações nos estados afetivos; (…) (4) formas de defesa (por exemplo, repressão e identificação madura) que permitem ao indivíduo sustentar tensões psíquicas ao longo do tempo (em oposição à dependência de somatizações, fragmentações ou fantasias e atuações evacuativas como meios de dissipar e obstruir a dor psíquica)” (p. 36, grifos e tradução da autora).
Talvez esteja aí um elemento importante do incômodo causado por “O Processo”: enquanto o próprio nome da obra e seu conflito central (a ação criminal movida contra o Sr. K) pressupõem uma ideia de etapas que se sucedem e constroem uma resolução, a experiência do leitor é oposta. As fases do processo são inacessíveis ao Sr. K, faltam-lhe as informações necessárias. E quando eventualmente as encontra, não lhe fazem sentido. O trabalho que pode ser empreendido na tarefa (a escrita de petições) pode levar anos, e ainda assim provavelmente não será contemplado pelas autoridades. Tudo parece em vão. Não há a possibilidade de finalização do processo com uma vida que pode se desenrolar a partir dali: não existe absolvição. O que cabe ao acusado é perpetuá-lo, adiando sua resolução (cuja consequência não é mencionada, porém causando a impressão de ruína absoluta), e repetindo eternamente as mesmas etapas, sem progressão, transformação ou mudança. Daí a experiência claustrofóbica, de não sair do lugar.
Em momentos de intenso sofrimento, observo que há, muitas vezes, uma perda da experiência da passagem de tempo: um indicativo importante de estarmos diante de uma mente que organiza e percebe o eu e o mundo a partir de um arranjo esquizoparanoide. Há uma sensação (que não é o que é pensado, mas sim sentido, experimentado) de que tudo sempre será como no presente momento; ou melhor, há uma condenação à eterna repetição daquilo que sempre é, sempre foi e sempre será. Se há resolução possível, não é pensada ou formulada, mas sim experimentada como terror, fim absoluto, aniquilação. E a confiança na própria capacidade em conter a dor psíquica – e tolerá-la – depende em parte, a meu ver, da convicção de que ela é provisória, ao menos nas características atuais de qualidade e intensidade. Mesmo que alguma mudança seja experimentada não por um processo elaborativo, mas sim defensivo, há variação na experiência de dor psíquica. Não me refiro aqui a organizações que encontram, de alguma forma, uma maneira de anular a dimensão temporal da experiência psíquica, paralisando o trânsito natural entre PS e D – isso pediria discussão para além do escopo deste texto[4]. Me refiro a aparelhos psíquicos onde há um trânsito possível, mesmo que em desequilíbrio, entre PS e D, e que a percepção estática da temporalidade não se refere à realidade. O paciente tem essa impressão, mas não é o que realmente acontece. O analista pode perceber discretas mudanças e flutuações. A elaboração da situação atual revela-se possível, e, ao longo do tempo, o paciente é capaz de transformar seu estado de mente. E a vida pode se desenrolar mais uma vez.
Na clínica, quando possível e, a meu ver, útil, procuro delinear em breves intervenções a ideia de processo, tanto dentro do processo analítico como um todo (“lembrei-me de algo que você me dizia no começo da análise, e que hoje não me diz mais”), ou mesmo dentro do intervalo de uma única sessão (“no começo da sessão você me parecia aborrecido, agora está diferente”), algo que indique que estados emocionais se sucedem, e que o indivíduo existe em todos eles. Na análise em alta frequência, observo, a percepção de transformação dos estados emocionais está favorecida, uma vez que o relato dirigido ao analista – em voz alta, sobre si mesmo – estimula o contínuo observar do mundo interno e suas variações. Então por vezes ouço, “como mudamos rápido, ontem estava de um jeito, hoje estou de outro”, facilitando a percepção do paciente de existência contínua, onde um estado sucede o anterior, e a constante é a existência do eu. “Eu sei que vai passar”, disse-me uma paciente certa vez, “mas não sinto que vai passar”. Penso ser de grande valia manter em mente essa característica perturbação da experiência de temporalidade na posição esquizoparanoide: apresenta-se como uma via útil para o trabalho de elaboração desse estado de mente, algo que, quando ressaltado pelo analista, tem o potencial de chamar a atenção do paciente (em que predominam aspectos não-psicóticos) para um funcionamento psíquico no mínimo “esquisito”, o que pode desaguar no entendimento de que o que ele percebe pode não ser o que é – e daí o sentimento de esperança, algo progressivamente perdido pelo Sr. K, que, ao final do livro, caminha resignadamente em direção a seu carrasco.
Referências
KAFKA, F. (1925). O Processo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
KLEIN, M. (1946). Notas sobre alguns mecanismos esquizoides. In: Klein, KLEIN, M., HEIMANN, P., ISAACS, S., RIVIERE, J. Os Progressos da Psicanálise. Rio de Janeiro: LTC, 1982.
OGDEN, T. (1994) Subjects of Analysis. Lanham: Rowman & Littlefield, 2004.
STEINER, J. (1933). Refúgios Psíquicos. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1997.
Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, www.houaiss.online.
Enciclopédia Britannica, www.britannica.com.
[1] Membro associado SBPSP, editora do Jornal de Psicanálise.
[2] Essas informações, que são conhecidas no mundo literário, podem ser encontradas em mais detalhes no site da Enciclopédia Britânica, www.britannica.com.
[3] Ressalto, neste trabalho, apenas um aspecto (a experiência da dimensão temporal) das posições esquizoparanoide e depressiva que, evidentemente, são organizações psíquicas em que diversos elementos constantes se apresentam e as tornam características. Para uma compreensão mais profunda, sugiro a leitura de Klein (1946).
[4] Uma reflexão importante a este respeito é proposta por Steiner em “Refúgios Psíquicos” (1993).
Imagem: Franz Kafka (Wikipedia)
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