Freud, enfim completo: Homenagem a Paulo César de Souza
Home Blog Sigmund Freud Freud, enfim completo: Homenagem a Paulo César de SouzaO historiador, tradutor, ensaísta e germanólogo Paulo César de Souza entrou para os debates sobre as traduções de Freud para o português ainda na década de 1980. Até então, a grande maioria dos textos freudianos disponíveis aos leitores brasileiros eram traduções indiretas, como a tradução da Edição Standard, originalmente publicada em inglês. Já em 1985, Paulo César de Souza queixava-se de como as versões brasileiras não preservavam a “precisão, […] cristalinidade, […], cadência bela e serena do original” (Souza, 1989, p. 159), lembrando também que, ainda em vida, Freud fora agraciado, em 1930, com o Prêmio Goethe, por sua prosa tida como um ponto alto da ensaística alemã.
Em 1989, Paulo César publicou o artigo “Freud como escritor”, no qual começou a esboçar suas reflexões sobre a retórica e a estilística do fundador da psicanálise. Como adendo, ofereceu uma tradução de “A transitoriedade” (1916), exemplificando o registro linguístico que propunha como norte para as traduções desse autor. Em 1996, concluiu uma tese de doutorado em Língua e Literatura Alemã pela USP, As palavras de Freud: o vocabulário freudiano e suas versões, que seria transformada em livro (uma 2ª edição foi lançada pela Companhia das Letras neste ano de 2025). Nesse volume, expõe de maneira mais detida a história das principais traduções da obra freudiana e suas reflexões pessoais sobre os critérios a serem adotados para a empreitada de verter a obra do vienense para o nosso idioma. Para nossa felicidade, a editora Companhia das Letras acabou abraçando um projeto da tradução das obras completas sob a curadoria de Paulo César, e o primeiro volume apareceu em 2010. Neste ano de 2025, quinze anos depois, Paulo César de Souza finalmente completou o trabalho. Agora, temos enfim as obras completas de Sigmund Freud traduzidas diretamente do alemão para o português brasileiro.
Para celebrar essa empreitada, o blog convidou três membros da SBPSP – Mariangela de Oliveira Kamnitzer Bracco, Luís Carlos Menezes e Eduardo Zaidan – a darem seus depoimentos sobre o sentido e significado da primeira tradução direta do alemão das obras psicológicas completas de Sigmund Freud.
Referências:
Souza, P. C. (1989). Sigmund Freud e o Gabinete do Dr. Lacan. São Paulo: Editora Brasiliense.
MARIANGELA BRACCO:
Meu interesse pelas traduções de Freud surgiu durante a faculdade, na década de 1980. Na época, lia as Obras Completas de Sigmund Freud da Editora Delta, enquanto meus colegas liam a Standard Edition brasileira. As comparações foram inevitáveis: incrível que o mesmo texto, vertido por diferentes tradutores, pudesse causar impressões tão distintas! Ao cotejar as duas versões com o texto original, constatei que minha edição guardava a elegância e o estilo da escrita de Freud. Assim, meu despertar do interesse pela psicanálise se deu acompanhado de uma observação atenta e curiosa para as questões de tradução. Além do mais, o trânsito entre culturas me é familiar: meu berço linguístico é o português, mas desde sempre a língua alemã me foi presente e muito cedo comecei a estudar de forma prazerosa o idioma paterno. Por fim, é preciso salientar que o ofício do tradutor apresenta semelhanças com o do psicanalista. A palavra Übertragung significa tanto tradução como transferência, e ainda transmissão e contágio!
Ao longo dos anos fui acompanhando tudo o que se referia à tradução de Freud para o português, dos pequenos aos grandes salões! E muita coisa acontecia, porque em 2010 as obras cairiam em domínio público. Um dos eventos mais significativos foi o XI Congresso Latino-Americano de Germanística (2003). O eixo temático “Freud como Desafio: Tradução e Efeitos da Obra” reuniu psicanalistas das mais diversas instituições, germanistas, filósofos, historiadores, estudantes universitários etc. num animado debate que visava a preparar o terreno para as novas traduções, tendo em vista a imensa literatura sobre o assunto e duas grandes versões: a inglesa e a francesa. No Brasil, tínhamos o trabalho pioneiro da psicanalista e germanista Marilene Carone, que foi a primeira a traduzir de forma competente e diretamente do alemão alguns textos de Freud, além de outros dois estudos de fôlego: As palavras de Freud: o vocabulário freudiano e suas versões, de Paulo César de Souza (Editora Ática, 1988), e o Dicionário comentado do alemão de Freud, de Luiz Alberto Hanns (Editora Imago,1996). Os dois autores se mostravam altamente qualificados para a tão aguardada empreitada e havia uma alegre expectativa quanto à nova safra que adviria do “terroir” brasileiro.
Luiz Hanns, pela Editora Imago, deu a largada em 2009. Psicólogo e psicanalista, privilegiou o aspecto conceitual da obra. No ano seguinte, Paulo César de Souza começou a publicar suas traduções pela Editora Companhia das Letras. Historiador e reconhecido tradutor de Brecht e de Nietzsche, valorizou por sua vez o aspecto literário. Nesses anos era comum me perguntarem qual tradução considerava a melhor. Obviamente não havia resposta certa; eram duas propostas de envergadura e bem fundamentas, cada qual com seu estilo e talvez mais propícia a um certo grupo de leitores. Lamentavelmente, as publicações da Imago se restringiram a uns poucos títulos. Mas, para nossa sorte, a Companhia das Letras realizou seu projeto editorial das Obras Completas de Sigmund Freud, cuja recente conclusão comemoramos!
Faço algumas observações sobre a tradução do Paulo César de Souza, pois é central nessa realização que priorizou “o máximo de fidelidade ao original, sem interpretações ou interferências de comentaristas e teóricos de psicanálise”. Souza entrega o que promete nas páginas iniciais de cada volume da Companhia das Letras: sua versão “clean” apresenta ao leitor a escrita freudiana em toda sua naturalidade. Isso é facilitado pela sua experiência enquanto tradutor de grandes autores de língua alemã, e, reiterada vezes, afirmou que sua aproximação com Freud se deu pela “via da linguagem e da literatura”. Se essa perspectiva não favorece uma compreensão conceitual, e compartilho das críticas quanto às suas opções para os termos Trieb, Verdrängung e Ich – instinto, repressão e ego, respectivamente -, por outro lado, preserva o frescor do texto e o jeito de Freud escrever.
A começar pelo fato que procura transpor as frases para o português preservando a sintaxe do alemão, sem soar artificial. O cuidado com que escolhe as palavras revela um grande conhecimento da língua de partida como também a de chegada. Às vezes recorre a um vocábulo pouco utilizado no português para dar o exato sentido da palavra alemã no contexto – não poupando o leitor com soluções fáceis. Finalizo mostrando com um exemplo a fidelidade de Souza ao original. No prefácio do Caso Dora, em que Freud se justifica por publicar assuntos da vida íntima de sua paciente, ele constrói toda uma rede semântica em torno da ideia de segredos (Geheimnisse) que foram revelados em análise e que então eram tornados públicos por meio da comunicação científica. Souza, em sua tradução, preserva a rede semântica e transmite com muita propriedade a delicada situação do primeiro psicanalista, que trazia para cena algo até então secreto e desconhecido: a sexualidade feminina.
Tendo expressado minha admiração pelo trabalho de Souza para a Companhia das Letras, quero dizer que há dois volumes assinados por outros tradutores, André Carone e Laura Barreto, que ainda não pude apreciar. Devem ser também de excelente qualidade!
Mariangela de Oliveira Kamnitzer Bracco é membro associado da SBPSP
LUÍS CARLOS MENEZES:
Com a publicação nesse ano, 2025, dos últimos dois volumes da coleção, temos agora, pela primeira vez, as obras de Freud traduzidas do alemão numa edição da Companhia das Letras, em pequeno formato, de apresentação e leitura agradável, condizente com a qualidade da rigorosa e bela tradução de Paulo César Lima de Souza. Esse tem todas as razões para estar orgulhoso de ter dado conta do seu imenso desafio. Solicitado a dar um depoimento sobre momentos que testemunhei da história ou da pré-história desse feito, que para alguns de nós vem de longe, bem como de seu alcance, vou recorrer a citações de testemunhos, situando-as no frescor dos momentos, tal como as encontro, em especial, no Jornal de Psicanálise.
Começo mencionando uma pequena apresentação que Paulo César fez, em 1994, de dois textos de Freud traduzidos por ele do alemão e publicados naquele volume do Jornal. Ele menciona ali as duas traduções anteriores, uma da editora Delta, dos anos 40, e a outra, dos anos 70, da editora Imago; a primeira traduzida do espanhol e a outra do inglês. Afirmando, sobre suas traduções, que “não têm a pretensão de serem definitivas. Elas se relacionam com os seminários sobre a tradução de Freud que conduzi no segundo semestre de 93, na sede da SBPSP. E partilham, portanto, o caráter exploratório daqueles seminários.” Define-se como “um germanista, alguém que se aproxima de Freud por meio da língua e da literatura alemã…”[1]. O futuro autor da tradução das OC de Freud faz também referência à sua tese de doutorado sobre o tema – então em andamento. Essa foi posteriormente publicada como As palavras de Freud – o vocabulário freudiano e suas versões, onde o autor fundamenta amplamente a orientação e muitas de suas escolhas na leitura-tradução dessa obra.
Sobre “os seminários” por ele mencionados, vale dizer que, de fato, em 1993 a Sociedade de São Paulo (SBPSP), como digo em uma retrospectiva que me fora solicitada, “tomou a iniciativa de organizar seminários bimestrais, convidando não só conhecedores da obra de Freud, mas também tradutores, germanistas, filósofos com competência e interesse. Esses seminários se mantiveram por cerca de quatro anos…Os trabalhos de Paulo César… constituíram a viga mestra desses seminários.”[2] Mas outros trabalhos de tradução, como os de Luiz Alberto Hans, também foram apresentados, com a sua participação. Ele formara uma equipe e publicou, posteriormente, dois volumes de uma tradução do alemão. Só não pôde levar adiante o seu projeto por uma questão circunstancial de saúde.
Não éramos poucos os que em nossos trabalhos e, principalmente, no ensino de Freud, sentíamos duramente falta de uma tradução de melhor qualidade. A tradução feita nos anos 60, por diferentes tradutores e a partir do inglês, “resultou em textos de qualidade muito heterogênea, contendo erros grosseiros de conteúdo e nada do estilo fluente, elegante, preciso tão destacado pelos leitores de Freud em alemão. Paulo César, bem como a nossa saudosa colega Marilene Carone, tiveram o mérito de mostrar isto de forma circunstanciada em publicações dos anos 80, retomadas posteriormente num livro organizado por Paulo César, publicado em 1989, Sigmund Freud e o gabinete do Dr. Lacan.” [3]
Os direitos autorais pertenciam à editora Imago e somente cairiam em domínio público setenta anos após a morte de Freud (1939), ou seja, em janeiro de 2010. O sonho por novas traduções era intenso e o tempo pela frente parecia infinito. Os 14 textos de Freud traduzidos pelo Paulo César e publicados no Jornal, entre 1994 e 2001, requeriam, naturalmente, a cada vez, a necessidade de uma autorização pessoal, por escrito, de nosso colega da Imago, Dr. Jayme Salomão. Felizmente sempre contamos com a sua generosidade, o que tornou possível anteciparmos o seu uso em nossos seminários.
Indispensável mencionar, explicitamente, que essa tradição de publicação de traduções no Jornal de Psicanálise fora inaugurada pela publicação pioneira, no número 36(1985) do Jornal, de Luto e melancolia, feita por Marilene Carone, com muitas notas, algumas admiravelmente refinadas, e um quadro, no final, elencando todas as divergências e correções com o texto das OC da época.
Portanto, de 2010 a 2025, em quinze anos – sonho realizado! – temos enfim as Obras Completas de S. Freud, em uma tradução para a nossa língua de uma das mais importantes obras de nosso tempo, resgatando essa dívida com nossa área de interesse, a Psicanálise, e com a cultura brasileira. As outras iniciativas de traduções que foram surgindo nesse tempo, como o excelente trabalho das chamadas Obras Incompletas, liderada por Pedro Heliodoro Tavares e Gilson Iannini, a Interpretação dos Sonhos entre outros de Renato Zwick, o manuscrito de 1931 sobre o presidente Wilson por Elsa Vera K. P. Susemihl e, agora, uma tradução de André Carone, só enriquecem a nossa cultura e nossas possibilidades de pensar com Freud. O que é muito! Gratidão ao Paulo César e à Companhia das Letras!
Hoje, se não tivermos o privilégio de ler em alemão, podemos de novo descobrir o quanto em Freud, “mesmo quando se torna conceito, a palavra não é desenraizada do viveiro natural da linguagem de onde saiu, conservando a margem de ambiguidade e as potencialidades de desdobramento polissêmico que têm na linguagem comum, sem ser isolada num conceito abstrato”[4], o que nos põe diretamente no terreno da clínica psicanalítica.
Luís Carlos Menezes é membro efetivo e analista didata da SBPSP.
EDUARDO ZAIDAN:
Em 2010, Paulo César de Souza foi convidado pelo Sedes para debater o seu livro As palavras de Freud. Alguns psicanalistas, à época, ultrajados com certas escolhas do tradutor, responderam com uma indignação que persiste até os tempos atuais, e que comporta um certo desmerecimento dessa tradução, especialmente por ter vertido Trieb por instinto (termo que é considerado uma heresia em certos círculos de psicanálise). A necessidade de banir o instinto chegou a tal ponto que na tradução de Jean Laplanche de Psicologia das massas, nas citações feitas por Freud a um autor francês do final do século XIX, Gustave Le Bon, foi necessário “corrigir” o texto, para que no lugar de instincts constasse pulsions.
Das intervenções da plateia do Sedes, uma delas merece destaque, a de Renato Mezan. Segundo ele, é inevitável que o leitor fique à mercê das escolhas do tradutor. A única maneira de libertar-se dessa opressão é aprender a língua original. O leitor não pode esperar do tradutor mais do que ele pode oferecer. Invariavelmente, o tradutor faz escolhas; estas denunciam uma predileção, seja por uma fidelidade aos significantes, como no caso de Laplanche, seja, como no caso de Souza, por uma qualidade literária. Numa tradução vernacular, privilegia-se menos uma consistência na tradução dos conceitos. Em outras palavras, os psicanalistas prefeririam que sempre que Freud empregasse um determinado conceito em alemão, uma mesma palavra fosse usada em português. Ora, nem sempre isso é possível, como com a palavra Angst, que foi traduzida por angústia, mas que em determinados contextos significa medo; isso pode ser ilustrado no Pequeno Hans, quando se diz que o garoto sentia Angst vor den Pferden. Não se trata de angústia diante dos cavalos, mas de medo mesmo, evidentemente. Traduzir por angústia, aqui, incorreria no absurdo.
A fala de Mezan, além de aceitar as limitações de toda tradução, elogia a variedade de soluções. Cada tradutor capta um diferente aspecto da obra freudiana. Essa diversidade deve ser acolhida, não rechaçada. Subjacente às implicâncias com as escolhas do tradutor, não está em jogo somente um debate a respeito do significado das palavras de Freud, mas também questões políticas, porque trata-se, em última instância, de qual Freud deve ser apresentado para o grande público; este pode, inocentemente, ser dirigido a formular uma visão equivocada do “verdadeiro Freud” e da “verdadeira psicanálise”.
Ironias à parte, talvez os psicanalistas tenham uma dose de razão. Um filósofo que insere Freud numa tradição biológica e médica, ou o linguista que o insere numa tradição romântica de Schopenhauer e Nietzsche, possa aprender algo com os psicanalistas, pois Freud não se reduz a essas influências, já que ele se apropria de termos de outras áreas para fundar os seus conceitos, que estão permeados por uma experiência clínica e por sua análise pessoal.
Mas, ao mesmo tempo, os psicanalistas possamos também aprender com essa tradução e com outras, que nos impeçam de enxertar, no texto, conceitos que podem não estar lá. Como quando Lacan lê uma passagem famosa do caso Schreber, como se Freud estivesse empregando a Verwerfung. Ou nas incontáveis vezes que Freud “confunde” Verdrängung e Unterdrückung ou Verleugnung e Verwerfung.
Os psicanalistas, às vezes, se pretendem mais freudianos que o próprio Freud, corrigindo todas as suas imperfeições, as suas infidelidades consigo mesmo.
É algo assim que esse confronto com diferentes traduções pode proporcionar, para além daquelas feitas por psicanalistas com todas as soluções que nos agradem. A leitura pode ser uma experiência de verdadeira descoberta, não do que Freud deveria ter escrito, desse nosso Freud ideal, mas daquilo que o tradutor nos revela ao teimosamente não se adequar às nossas expectativas.
Uma limitação, daí sim, dessa tradução, foi não ter incluído alguns textos, não sei se por questões de direitos autorais ou se por outras razões, como a monografia das Afasias e o manuscrito dos atendimentos do Homem dos Ratos.
De resto, meus sinceros parabéns para o Paulo.
Eduardo Zaidan é membro associado da SBPSP
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[1] Jornal de Psicanálise, vol.27,1994, n.5, p.109-110.
[2] Jornal de Psicanálise, vol.35, 2002, n,64/65, pp. 374.
[3] Jornal de Psicanálise, vol.35, 2002, n.64/65, p.374.
[4] Revista Brasileira de Psicanálise, n.23, 1989, p.38 e, também, em LC.Menezes, Fundamentos de uma clínica freudiana. São Paulo: Casa do Psicólogo,2001, p.212.
Imagem: Coleção Freud
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