Apaixonadamente como Peri – Quando a psicanálise volta a ouvir a terra
Home Blog ancestralidade Apaixonadamente como Peri – Quando a psicanálise volta a ouvir a terraDepois de tudo sairão do chão
Mães amazonas, negras aiabás
No seio o leite da ressurreição
No ventre o sêmen dos tupinambás
Depois do império do norte ter sido em vão
Depois de tropas, ruínas ocidentais
Depois que o mar cair na goela do sertão
E que o sertão cair nos mares abissais
Depois de tudo sairão do chão
Icamiabas, iracemas, iás
Na língua o líquen da revelação
No corpo aceso e bonito o espírito são
Do amor e da paz
Mães – Thiago Amud
Na manhã em que o encontro Amanhecer Ancestral promovido pela Diretoria de Cultura e Comunidade da SBPSP aconteceu, havia no ar a promessa de um ciclone chegando na cidade. As notícias anunciavam ventos fortes, talvez chuva, talvez o caos. Mas o que chegou, na verdade, foi outro tipo de ventania: a dos novos tempos. Um vento que não destrói, mas varre o pó acumulado nas estruturas antigas, abrindo espaço para um pensamento psicanalítico mais arejado, que respira, que se amplia e se permite incluir outras vozes.
A psicanálise, acostumada a olhar para dentro, voltou-se para a terra, para os povos, para o canto, para os rios, para os que vieram antes de toda teoria. E nesse movimento, algo se deslocava, afinal não era apenas um evento, era um retorno.
Na introdução do livro Como Falar com os Mortos, Kaíke Nanne diz:
“Nossa tendência é imaginar que povos que preservam tradições milenares vivem à margem da história, como se fossem sobreviventes de um tempo arcaico prestes a desaparecer. Mas e se for justamente o contrário? E se esses povos souberem de algo que esquecemos, ou que fingimos esquecer? Algo sobre o tempo, o corpo, o medo a convivência. Algo sobre como lidar com o silêncio, com a morte, com aquilo que não se controla.”
A voz dos povos originários ecoou para nosso auditório de psicanalistas como uma lembrança antiga: o reconhecimento de que o humano vinha do chão batido, nas rodas em torno do fogo, nas narrativas que explicavam o mundo por meio do canto e do silêncio. Antes de aprendermos a escutar aquele que se deita no divã, ouvíamos os pássaros, a voz do vento, os ruídos dos animais.
Somos feitos de som e fúria, como dizia Shakespeare, de pulsão de vida e de morte, mas também de florestas, cachoeiras, aves e feras. Freud, em sua escuta, quis ouvir o homem ocidental suas neuroses, suas culpas, seus desejos interditos. Mas naquela manhã de novembro, a escuta se abriu para outra frequência: Somos também ambiente e natureza.
Tivemos um movimento bonito: uma plateia que parecia disposta a se curvar, não por submissão, mas por reverência. Curvar-se é um gesto de humildade; é reconhecer que há saberes que não cabem no livro, que o inconsciente também fala em língua indígena.
Interessante que pela primeira vez, não houve ninguém citando o próprio artigo, na hora das perguntas, um desejo genuíno de aprender, de se aproximar e de honrar.
Fui procurar a definição da palavra honrar no dicionário e encontrei: “Prestar honra e respeito a: honrar os sábios. Expressar glória e louvor; venerar, reverenciar: honrar pai e mãe. Sentir-se lisonjeado, agradecido; lisonjear: muito me honra seu convite. Satisfazer os compromissos: não honrou sua assinatura.”
Fiquei pensando que as falas dos convidados revigoraram nosso compromisso com o humano, com a sabedoria, e com aqueles que vieram antes de nós. Como diz um provérbio da papua nova guiné: O espírito que veio antes de ti, caminha à sua frente.
Em meio às falas e cantos, algo bonito aconteceu: as mulheres presentes se encantaram com o artesanato indígena. Pouco a pouco, foram se adornando com colares, sementes, de miçangas coloridas. Era como se quisessem levar daquela manhã não apenas uma lembrança, mas uma revelação a de que pertencem, também, a uma tribo. Havia algo de ritual nesse ato silencioso: o desejo de vestir um símbolo, de expor um objeto interno, se enfeitar com uma ligação antiga com a terra e com o coletivo. Como se, por instantes, cada uma reencontrasse em si, uma parte que estava aterrada.
Lá pelas tantas, uma das convidadas, Bárbara Nascimento Flores, disse algo que veio comigo para casa, como um adorno: que sofria com o conceito psicanalítico de culpar os pais pelas nossas neuroses, pois, em sua cultura, aprendera a honrar a ancestralidade. Essa frase ecoou em mim. Fiquei pensando no movimento psicanalítico, no quanto nossos autores também são o nosso chão de terra batida, onde nos apoiamos, refletimos e, com o tempo, também nos transformamos. Teoria é barro que molda nosso fazer. Mas não pode ser gesso enrijecido.
Assim como a terra muda de forma com a chuva e o vento, também os fundamentos da psicanálise precisam se deixar tocar pelas novas estações. Honrar Freud, Klein, Winnicott ou Bion não é permanecer imobilizado diante deles, mas seguir dialogando, permitindo que o pensamento respire e floresça sobre o mesmo solo, agora um pouco mais fértil, onde novas vozes possam cantar.
Fiquei também profundamente tocada pela história de Bibi Nhatarãmiak e pela reverência com que ela se aproximou dos ossos de uma criança, antes expostos num museu, a fim de cuidar de seu projeto de pesquisa. Sua delicadeza ao se deter, antes de estudar, para escutar a dor daqueles ossos ancestrais, revela-nos algo essencial: o respeito pelo que foi vivido. E pensei que, de algum modo, esse gesto é o mesmo que o analista deve ter quando alguém chega ao seu consultório. Porque esse corpo que chega com marcas, dores e esperanças também precisa ser honrado. Antes de qualquer interpretação, é preciso um gesto de reverência.
Receber alguém em análise é, de certa forma, curvar-se a sua singularidade. É cuidar para que as palavras não violentem, mas revelem; para que o olhar não invada, mas acolha.
E houve também uma fala profundamente tocante no encontro: o conceito de tornar-se encantado.
As mulheres indígenas contaram que, quando alguém morre, encanta-se. Morei nessa palavra por um tempo. Morrer é tão pesado, mas encantar é tornar-se sagrado. Elaborar o luto pensando que quem parte se torna um canto dentro de nós, um objeto interno, uma voz que permanece nos acompanhando, sussurrando por entre os dias e as noites é uma forma muito mais suave de acomodar a ausência. Talvez o encanto seja o modo mais belo de permanecer: não mais corpo, mas presença; não mais carne.
E como o inconsciente é sempre vivo e atento captando o que precisa ser dito, ao final do encontro, num papo informal, conversamos sobre uma psicanalista chamada Cléo Lichtenstein Luz, que acaba de completar cem anos. Formada pela doutora Adelaide Koch, Cléo atribui sua vitalidade à curiosidade constante, ao desejo de se manter em movimento, sem se prender ao lugar melancólico de reverenciar o passado nem ao anseio ansioso pelo futuro. Talvez ela traga em seu nome algo que ilumina: Luz.
Em tempos de crise climática, é verdade que dá medo de ansiar pelo futuro, mas, ainda assim, a essência da vida é a fluidez. E a psicanálise, se quiser permanecer viva, também precisa desse movimento: continuar respirando, expandindo, incluindo, tocada por vozes diversas. Ao mesmo tempo sem deixar de honrar sua ancestralidade e tudo que veio dela. Fazer uso da herança psicanalítica que recebemos, pensando no conceito Kleiniano de gratidão, agradecer é fazer uso daquilo que recebemos.
Deixo semeadas nesse registro as palavras de doutora Cléo, que é, para mim, alguém da cultura ancestral da minha própria família cresci ao lado dela, ouvindo seus pensamentos, seu amor pelos livros, pela psicanálise e sua leveza. E acredito que essa sua sabedoria a de manter-se curiosa, viva, em movimento é, talvez, o verdadeiro amanhecer. Como diz Valter Hugo mãe: “o importante é seguir procurando, estar vivo é procurar.”
Nessa mesma noite, fui a um show da Marisa Monte e ouvi a letra de cérebro eletrônico com muita atenção: “O cérebro eletrônico faz tudo, mas ele é mudo, e não me dá socorro nesse caminho inevitável para a morte.” Pensei na inteligência artificial, no quanto ela acaba nos afastando do que realmente precisamos fazer: Pensar e sentir.
Naquela manhã senti que o Amanhecer Ancestral não foi sobre “dar voz” aos povos originários, porque eles sempre tiveram voz, mas sobre ouvir de outro lugar. E talvez seja esse o verdadeiro exercício analítico: escutar o outro sem querer traduzi-lo para a nossa língua, mas aprender a balbuciar na língua dele, ainda que tropeçando.
Nossa sede, naquele dia, não era mais Olimpic Tower, tinha o conforto de uma aldeia. E assim, enquanto o sol renascia sobre a SBPSP, percebi que o indígena da canção de Caetano não desceu de uma estrela colorida e brilhante, pois ele sempre esteve aqui, esperando que o nosso olhar se voltasse novamente para o essencial.
Referências bibliográficas:
NANNE, Kaíke. Como dançar com os mortos: uma jornada por cinco continentes em busca da sabedoria ancestral. São Paulo: Maquinaria Sankto Editora e Distribuidora Ltda.
MÃE, Valter Hugo. As mais belas coisas do mundo. São Paulo: Biblioteca Azul, 2019.
Helena Cunha Di Ciero é membro efetivo da SBPSP.
Imagem: Eduardo São Thiago Martins (acervo pessoal)
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