Wilfred R. Bion no Brasil
Paulo Cesar Sandler
Membro efetivo – SBPSP
Dr. Wilfred Ruprecht Bion, cidadão britânico, filho de um engenheiro, descendente de uma família de Huguenotes, nasceu na Índia. Transportado durante a infância, sem os pais – costume dos funcionários coloniais do Império Britânico – para estudar em Oxford, serviu ao Exército nas duas “Grandes Guerras” do século XX – inicialmente, como capitão em um batalhão de tanques, e depois, como psiquiatra militar, descobrindo a possibilidade de fazer-se dinâmica de grupos sob base psicanalítica, em função de uma análise com a Sra. Melanie Klein. Viveu a maior parte de sua longa e frutífera vida em Londres; era um dos poucos analistas que atendiam pessoas rotuladas como “psicóticos”. No final dos anos 1940, e de modo crescente, na década seguinte, passou a ser considerado por uma parte razoável – em termos dos “formadores de opinião” no movimento psicanalítico inglês, então dominante no movimento psicanalítico mundial – pela notável concentração de muitos autores inovadores . O trabalho de Bion sobressaiu-se entre “formadores de opinião”, como Donald Winnicott, ultrapassando os limites da ilha britânica: Jacques Lacan decidiu entrevistá-lo, e, entre 1950 e 1960, de modo especial, ocupou maior interesse na América Latina, com o Dr. León Grinberg, Dr. Alcyon Baer Bahia, D. Virginia Leone Bicudo, D. Maria Manhães e Dr. Bernardo Blay (em psicoterapia de grupos). O Brasil foi o primeiro país, no mundo inteiro, a publicar traduções de Bion, pela iniciativa do Dr. Jayme Salomão, que fazia formação em São Paulo. Assim como era claramente reconhecido por alguns, outra parte dos integrantes do movimento psicanalítico mantinham outras visões, em franco “des-reconhecimento”, ou incompreensão: era visto como “obscuro” e que suas contribuições “não eram mais psicanálise”.
Quando contava com 70 anos, no final de 1967, Dr. Bion, tendo servido por duas vezes como Presidente da Sociedade Psicanalítica Britânica, em função de uma situação ambiental onde sentiu-se “cooptado pelo establishment... o morno ambiente de Londres”, situação que pareceu-lhe sufocar um espaço para criatividade. Este sentimento coincidiu com a formulação de dois convites, para ir morar no estrangeiro.
Um deles, formulado pelo Dr. Bernard Brandshaft e mais dois colegas, norte-americanos que moravam em Los Angeles. O outro, formulado pela Professora Virginia Leone Bicudo, que havia frequentado seminários e supervisões e “não perdia” nenhum trabalho apresentado por Bion em Congressos, no final dos anos 1950 e início dos anos 1960. Havia conhecido Dr. Bion por intermédio de seu então analista, o Sr. Frank Julian Philips. Os dois mantinham consultórios de psicanálise na Rua Harley; os dois haviam sido analisados da Sra. Melanie Klein, que encaminhara Mr. Philips para se tratar com Dr. Bion.
Dr. Bion resolveu-se pelo “oeste selvagem” dos Estados Unidos: mudou-se, com sua esposa, Francesca Bion, no bairro de Beverly Hills, em 1968, próximo à residência de outro amigo, o Dr. Albert Mason – cidadão inglês, como ele, que havia migrado dez anos antes. Havia escrito quatro livros, um deles, uma coletânea de artigos para congressos com reflexões posteriores .
O Sr. Philips – um dos fundadores da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, como D. Virginia – decidiu, em 1969, retornar à “Pauliceia desvairada”, onde havia morado desde meados dos anos 1930, até 1949; decisão aceita com entusiasmo, depois da desistência de Bion, por boa parte da Sociedade. Conhecia algumas pessoas na elite paulista , estabelecendo-se no bairro de Higienópolis, então sede da SBPSP.
Quatro anos depois – 1973 – Bion acedia em fazer uma visita a São Paulo, para ministrar palestras e supervisões. Seguida, de modo quase simultâneo, a visitas a outras capitais na América do Sul; retornou ao Brasil em 1974, visitando Brasília, e 1978 – sempre convidado por D. Virginia, e sempre acompanhado pela esposa, Sra. Francesca Bion, que organizava, dactilografava e editava seus textos. Alguns brasileiros fizeram análise com ele, no exterior: Dr. Jose Américo Junqueira de Mattos, Dr. Luiz Py e Silva e D. Marcia Camara. O Sr. Frank J. Philips serviu como tradutor simultâneo nas palestras, em um Brasil onde pouquíssimos analistas dominavam a língua inglesa.
O Dr. A. L. S. Pessanha, juntamente com o Dr. Ronaldo Mendes de Oliveira Castro, foram considerados por membros da família Bion como os mais amáveis anfitriões – sendo lembrados, juntamente com Dr. Virginia, por D. Francesca Bion, até o final de seus dias (2014) . A carta, conservada pela Diretoria de Documentação da SBPSP, atesta o fato. Nas supervisões, outros analistas, como a Sra. Jansy Mello e Dr. Jayme Sandler, funcionaram como “tradutores simultâneos”. Dr. Bion raramente autografava seus livros, mas fez questão de faze-lo para alguns destes tradutores em seminários. O impacto da obra de Bion reverbera até nossos dias, de modo notavelmente ampliado: o Brasil continuou sendo o primeiro país no mundo a traduzir as obras finais de Bion e grupos de estudo ampliaram-se, assim como eventos em torno da sua obra.
Estes últimos vinte anos foram seu período de maior criatividade na escrita . Incrementou-se o número dos que o qualificavam, com evidente juízo de valor, como “gênio”; outros, como “obscuro”. Algumas pessoas na elite política dominante da IPA suspeitaram haver a existência de idolatria, com finalidades políticas de elites dominantes, em torno da pessoa de Bion.
Fato assinalado por ele mesmo, em alguns livros: com desgosto explícito, beirando as raias da perplexidade. Recusava-se participar de movimentos de grupo escolásticos, do tipo, “kleinianos”, o que lhe custou acréscimo na incompreensão em seu ambiente natal. Ao se dar conta de que haviam aparecido “bionianos”, manteve uma postura de afastamento dos grupos que assim se colocavam.
Dr. Bion apresentava-se formalmente, segundo costumes da Inglaterra Eduardiana, em suas visitas e nos escritos, fato que originou curiosidade no Brasil: após seu nome, apareciam os acrônimos, D.S.O., B.A. M.R.C.S., L.R.C.P. Na referência de muitos que o conheceram, como D. Virginia, Dr. André Green e Dr. Robert Caper, sua presença impunha respeito e até intimidação aos mais agressivos, pela altura física, compleição atlética, porte militar e discurso pausado.
Os comentários sobre esta época final da vida de Bion, por ele mesmo, serão mais pertinentes do que o de comentadores:
“Tive muitas oportunidades de ouvir meus pacientes falarem sobre meus muitos defeitos e falhas, assim como sobre os defeitos e falhas da psicanálise. O mesmo tipo de coisa ocorreu quando transferi minhas atividades – pensei então que seria por um período curto de tempo, talvez uns cinco anos – para os Estados Unidos. Levou muito tempo para me acostumar, uma vez mais, ao fato que ninguém jamais ouvira falar de mim, a não ser uma ou duas pessoas que pareciam sentir, por alguma razão, que queriam ter alguma assistência a mais. Ao mesmo tempo, haviam me atribuído uma série de qualidades ou capacidades que pareciam ser irrelevantes; se eu tivesse as qualificações ou o hábito, teria me achado metido no papel de um tipo de messias ou deidade. Tudo isto correu paralelamente com o tornar-se cristalinamente claro para mim que eu era um mero ser humano, que a psicanálise, afinal de contas, era apenas uma forma de comunicação verbal, e que havia limites para o que podia-se fazer com ela – especialmente pelo fato da pessoa estar na dependência de ter alguém que ouça aquilo que ela tem a dizer. Assim, por ter que dizer alguma coisa, e também por ter que ter alguém que ouvisse o que eu dizia, ficou claro que estava sendo impingida a mim uma posição, ou eu estava sendo convidado a ocupá-la, inteiramente alheia a meu alcance ou capacidade.
Comparando minha experiência pessoal com a história da psicanálise, e mesmo com a história do pensamento humano.... parece bastante ridículo que alguém se encontre na posição de ser visto estar nesta linha de sucessão, ao invés de constituir apenas uma de suas unidades. É ainda mais ridículo esperar-se que alguém participe de um tipo de competição por precedência, de quem está por cima. Por cima do que? Aonde este ‘por cima’ entra nesta história? Aonde entra a própria psicanálise? O que está em disputa? O que é esta disputa na qual supõe-se que alguém esteja interessado? Sempre ouço – como sempre ouvi – que sou um Kleiniano, que sou louco. Será possível estar interessado neste tipo de disputa? Acho muito difícil ver como isso poderia ser relevante, cotejado com o acervo de luta do ser humano para emergir da barbárie e da existência puramente animal para algo que poderia ser denominado, uma sociedade civilizada. Uma das razões que estou falando isto aqui é porque penso que seria útil caso nos lembrássemos da proporção das coisas nas quais estamos envolvidos, e onde, aproximadamente, se localiza um pequeno nicho que poderíamos ocupar.”
Notas
1. Até o momento, não surgiu nenhuma outra concentração de autores que puderam fazer contribuições dessa qualidade para o desenvolvimento da prática psicanalítica: sob a direção de Ernest Jones, entre 1940 e 1960, a Inglaterra providenciou ambiente propício para o trabalho de Melanie Klein, Anna Freud, Joan Riviere, Donald Winnicott, D. W. Fairbairn, Michael Balint, John Bowlby, Ella Freeman Sharpe, Hanna Segal, Elliot Jaques e muitos outros. Bion fez parte desta geração afortunada.
2. Virginia Leone Bicudo, comunicação pessoal, em In Memoriam, III: Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, Departamento de Publicações, 2002.
3. Experience in Groups (1961), Learning from Experience (1962), Elements of Psycho-Analysis, (1963), resenhado por Donald Winnicott, e Second Thoughts (1967).
4. Literatos e artistas plásticos, como o engenheiro Flávio de Carvalho, seu antigo colega de trabalho no departamento de Contabilidade da São Paulo Tramway, Light and Power Company, mais conhecida como “Light”, que operava os sistemas de energia elétrica e também de transporte urbano, composto principalmente pelos bondes.
5. As menções e votos de recomendações para D. Virginia Bicudo e Dr. Pessanha estão em comunicações verbais, incluindo cartas pessoais, para alguns membros da SBPSP, com quem a Sra. Bion manteve contato de amizade.
6. Atenção e Interpretação (1970), Uma Memória do Futuro, (1975-1979), The Grid (1977); e também as edições de algumas conferências e palestras; tanto em inglês com traduções, pela editora Imago. A partir de 1979, D. Francesca Bion assumiu as funções de editora de obras não publicadas; The Long Week-End, War Memoirs, Cogitações e reproduções de várias palestras no mundo inteiro.
7. DSO = Distinguished Service Order, a mais alta comenda militar a oficiais que não faziam carreira militar, por bravura (1918); BA = Bachelor of Arts, em história (Oxford, 1921), M.R.C.S. = Member of Royal College of Surgeons (Londres); L.R.C.P. = Licenciado pelo Royal College of Physicians (Londres).
8. Wilfred R. Bion, 1978. Gravação em fita, reproduzida em Cogitações, editado por Francesca Bion, 1992, p. 378. Existe uma versão em português, publicada pela Imago Editora, 2000, de onde retiramos a citação acima.
Maria Angela Moretzsohn
Coordenadora da Divisão de Documentação e Pesquisa da História da Psicanálise da SBPSP – DIDO.
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